quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A arte essencial de Leon Ferrari

Aos 90 anos, completados há pouco mais de um mês, o artista argentino León Ferrari permanece em atividade como um dos mais relevantes artistas latino-americanos, conhecido por obras de caráter polêmico e alfabetos estilizados. Nos últimos meses, frequenta pouco seu atelier, em Buenos Aires, mas mantém o viés criativo em novas produções. Algumas delas, que remetem ao abstracionismo e dão ênfase ao desenho já praticado em outras décadas, podem ser vistas na mostra Leon Ferrari – Um artista do seu tempo, realizada pela galeria Arte Aplicada, em São Paulo.

As 35 obras que compõem a exposição mostram um lado mais sereno de Ferrari. São contrárias às polêmicas esculturas e instalações de forte mensagem política. Em folhas de papel de tamanhos diversos, o artista trabalha finas linhas de tinta ou giz de cera que remetem a alfabetos imaginários ou trabalham a repetição de séries contínuas. Produzidas ao longo das últimas quatro décadas, estas obras mantêm unidade e apresentam a firmeza de um traço delicado, ao mesmo tempo, imperativo. “Pela força e criatividade, estas obras de Leon parecem sempre feitas por um jovem e não por um homem hoje com 90 anos”, comenta a curadora da exposição, Sabina de Libman.

Acostumado a lidar com os mais diversos materiais, incluindo orgânicos, Ferrari produziu este ano peças onde substitui a caneta nanquim ou o giz por uma espécie de cola com glitter. Faz assim transparecer um caráter lúdico, ao mesmo tempo em que mantém a ordem de desenhos e texturas utilizadas nas últimas décadas. “Ele tem esse lado suave e carinhoso. Sua outra persona exteriorizada é a da revolta”, diz a curadora.

Esta porção rebelde faz a produção do artista ser plural e articulada. Por um lado, traços detalhados e escritos cuidadosos tomam conta de seus cadernos de anotação, telas e papéis. Ao mesmo tempo, o artista produz algumas das mais importantes obras de apelo político. São da década de 1960 e 1970 seus trabalhos de caráter polêmico, como A Civilização Ocidental e Cristã (1965), onde substitui a cruz de Cristo por um avião de caça das Forças Armadas norte-americanas, sua primeira obra de apelo crítico visível. Nas décadas anteriores, focava-se em paisagens a óleo ou pastel sobre madeira (como Alicia, de 1947) e esculturas de cerâmicas ou madeira. Quando começou o processo de mudança temática, realizou alguns manuscritos sobre a problemática religiosa, mas ainda pouco compreensíveis.

A série Idéias para Infernos foi apresentada em 2000, no Centro Cultural da Espanha, em Buenos Aires. Nela, Ferrari amontoou virgens de gesso no liquidificador e Cristos na torradeira elétrica. Em uma gaiola, pássaros artificiais se posicionavam sobre imagens religiosas. A mesa da última ceia era dividida por imagens tradicionais, ratos e gorilas de plástico. Santos eram alfinetados e posicionados em triturador de carne, frigideiras ou raladores em cenários kitsch. À época da exposição, freiras e crentes se reuniam a porta da galeria para protestar e rezar o rosário. É o que narra a professora Andrea Giunta no livro Leon Ferrari - Uma retrospectiva, lançado pela Cosac Naify no Brasil, como parte da mostra Poéticas e Políticas, realizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2006. “A notícia circulou rapidamente e as vinte mensagens que condenavam a exposição foram respondidas por centenas em sua defesa”, diz Giunta. O artista comemorava que ações como estas colaboravam com a proposta da exibição.

Ferrari não se considera ateu ou anticlerical, mas se declara fascinado pelas figuras bíblicas e pelas interpretações que são feitas dos livros sagrados, muitas vezes controversas. Quando criança, estudou em colégio de padres e fez comunhão. Mais tarde, leu a bíblia exaustivamente e casou-se na igreja com sua grande companheira, Alicia, com quem assina algumas obras. Santos católicos se tornaram personagens de suas peças, onde são hostilizados com grande humor.

A atitude política que permeia sua trajetória foi deixada de lado, paradoxalmente, no período em que viveu exilado Brasil, entre os anos de 1976 e 1983. O artista deixou a Argentina sob ditadura após o exército começar a procurar pelo seu filho Ariel, desaparecido. Temerosos pela segurança da família, ele, a esposa e mais sete irmãos e sobrinhos passaram a morar em São Paulo. Localizada na Alameda Lorena, no bairro do Jardins, a casa do artista e seu atelier coletivo, na rua Amália de Noronha, em Pinheiros, eram pontos de encontro e discussão.

Nesta época, sua produção se mostra mais formal. Não se dedica à arte política, mas foca-se em manuscritos e esculturas metálicas. Algumas dessas peças podem ser vistas na exposição agora em cartaz na galeria Arte Aplicada. Ferrari fez pequenas esculturas de finos arames de ferro soldados que dialogam e se assemelham aos traços feitos a nanquim sobre papel. Também foi influenciado pelos espaços arquitetônicos da cidade e passou a construir peças em grande escala, algumas mostradas na exposição Arte Lúdica, realizada pelo MASP e posteriormente pela Pinacoteca, em 1978. Uma dessas peças, Berimbau, feita com barras de aço sobre vigas de madeira, pertence hoje ao Parque de Esculturas do Jardim da Luz, ligado ao museu do estado.

Com humor, ironia e erotismo, Ferrari destaca valores estéticos, questiona o poder, reverência figuras femininas e dá significado às repetições. Plural, consegue bifurcar sua produção inúmeras vezes, mantendo-se atrelado ao círculo de idéias originais que permeiam toda sua produção. Ao criticar a igreja, as guerras e os sistemas políticos se vale de elementos não artísticos para apontar o dedo nas chagas de nossa cultura. Ao mesmo tempo, se torna sublime e delicado quando desenha caligrafias que passam mensagem alguma e brincam com o cheio e vazio.

Para Giunta, sua trajetória está posicionada em “um território de coexistência entre a cultura erudita e a popular, entre o poético e o político, que ativa o poderoso motor dinamizador de sua obra”. De volta a Buenos Aires desde 1983, Ferrari hoje produz poucas peças que reafirmam a dualidade de sua produção. Se tornou, ao longo dos anos, mais essencial que paradoxal.

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