quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

pare, olhe, escute*


*originalmente publicada na Revista Mais nº17 

 No outono do ano 2000, na cidade de Santos, Paulo Eduardo Aagaard, o Pauê, caminhava rumo a academia de ginástica. O trajeto era repetido todos os dias, geralmente na parte da noite, depois que o jovem saía do cursinho. Ir a academia, assim como surfar, fazia parte de sua rotina. O trajeto era cortado por uma linha de trem, desativada há anos. Por uma dessas razões inexplicáveis da vida, naquele dia, passava por aqueles trilhos uma locomotiva. Sem perceber, Pauê atravessou a linha e acordou no hospital, com os paramédicos avisando que ele havia perdido parte das duas pernas.

Pauê tinha 18 anos e teve que reaprender a viver após o acidente que quase o matou. Mas, de certa forma, a fatalidade foi também responsável por transformar o garoto em homem. “Ele teve que amadurecer na marra”, conta sua mãe, Maria Cristina. Hoje, aos 30, o esportista, fisioterapeuta e palestrante conta sua história de maneira bem humorada e busca levar motivação e incentivo àqueles que, como ele, precisam diariamente superar desafios.

Aconteceu tudo muito rápido. Maria Cristina estava num curso noturno, quando recebeu a notícia do acidente do filho primogênito. “Parecia que estava num pesadelo, aquele tipo de coisa que nunca achamos que vai acontecer com a gente. Cheguei no hospital, encontrei a família chorando e aí vi que o negócio era grave”. Ela estava ao lado do filho, do ex marido Paulo e do caçula Bruno, quando os médicos lhe contaram que Pauê havia perdido parte das pernas.

A equipe lhe disse que dali a um mês ele voltaria a andar. Dias na UTI, muita dor, diversas cirurgias e três meses depois, não só Pauê estava em pé, como já estava de volta ao mar, surfando. Ainda se acostumando com um novo corpo, conta ter tomado uma decisão, dessas que mudam pra sempre a maneira de enxergarmos a vida. “O que temos de mais precioso é o livre arbítrio e as escolhas que fazemos são a maior razão da nossa vida. Na hora eu pensei: daqui pra frente minha vida vai ser assim. Cabe a mim decidir o melhor caminho e eu decidi ser feliz”.

A decisão de voltar a surfar foi o ponta pé inicial para uma nova vida. É no mar que Pauê encontra, até hoje, harmonia. Naquele momento, não seria diferente. “Já é difícil se equilibrar na prancha com as duas pernas, imagina com prótese”, diz. Depois de alguns meses de treinamento, ele conseguiu achar a melhor técnica para cair na água: sem próteses, de joelhos, com o leash (aquela cordinha que segura a prancha ao tornozelo do atleta) adaptado a cintura. Pauê se tornou assim o primeiro surfista biamputado do mundo e não há ninguém que surfe como ele assim. A readaptação aconteceu até nas vestimentas. A marca brasileira de surfwear Mormaii fez para Pauê uma série de roupas de borracha apropriadas a sua nova condição. Foi desta retomada ao esporte que ele pegou gosto por testar seus limites. Reaprendeu a nadar – “no começo não conseguia boiar, depois peguei o jeito” -, a andar de bicicleta – “outro dia ainda levei um tombo” - e a correr, com a ajuda de próteses de fibra de carbono especiais para o esporte e feitas sob medida.

As conquistas começaram quando, ao unir os três esportes, Pauê passou a se dedicar de corpo e alma ao triatlo. Treinava todos os dias, sempre alternando as modalidades, seguindo planilhas com acompanhamento de médicos e nutricionistas. Dois anos após o acidente, o primeiro surfista biamputado do mundo era também o para-atleta campeão brasileiro e mundial de triatlo. “O triatlo me estimulava a enfrentar minhas próprias limitaçõs, minha briga era comigo mesmo sempre”. Pauê se manteve campeão do Troféu Brasil de Triatlo por cinco anos, entre 2002 e 2006. Também foi bronze nos Jogos Pan Americanos realizados na República Dominicana, em 2003. Depois de vencer pela quarta vez o Campeonato Internacional de Triatlo, realizado pela CAF - Challanged Athletes Foundation, na Califórnia, o atleta se encantou com um novo esporte e desde 2008 se dedica a canoagem oceânica. “Com o tempo percebi que não bastava mais competir comigo mesmo. Optei por fazer do esporte uma ferramenta de comunicação, para passar a outras pessoas uma mensagem de superação”.

Introdutor do esporte no Brasil, sete vezes campeão brasileiro de canoagem olímpica, Fabio Paiva foi o responsável por levar Pauê ao mundo da canoagem oceânica. Depois de um contato inicial com o esporte, em provas de velocidade, Pauê percebeu na modalidade oceânica a sensação de ir além do recorde. “Hoje, meu objetivo não é quebrar recordes de tempo, mas fazer grandes desafios de resistência ”, diz. Para Pauê, nada se compara a sensação de estar sozinho na água. “Não me encontro em nenhum lugar mais que na água. Quando estou lá no fundo é de verdade. E se, por algum motivo, estou abatido ou mal humorado, preciso mergulhar”.

Com Fabio, pretende realizar um dos grandes feitos de sua carreira no final deste ano, o projeto Superágua. A ideia é sair do Rio de Janeiro de caiaque e percorrer 400 quilômetros até chegar a Santos. A travessia durará dez dias, será inteira documentada e a experiência servirá de material para futuras palestras em encontros com estudantes. “As expedições contam com leis de incentivo e o objetivo é sempre trazer um feedback educativo, focado no incentivo ao esporte e na bandeira da superação”. Para o ano que vem, planeja o projeto Super Bike, que levará Pauê e um outro convidado a dar a volta na ilha de Florianópolis de bicicleta.

Pauê conta seus feitos e planos com tranquilidade, gesticula bastante. Gosta de falar e é vaidoso. Mas o que mais chama atenção no convívio com ele – dizem - é o bom humor. Diego Nunes, seu sócio e amigo, conta que são raras as vezes em que o atleta está de cara fechada. Os dois se conheceram há pouco tempo, cerca de 1 ano e meio, e juntos mantêm a empresa NP2, responsável pela administração da carreira do atleta, assim como os projetos da Pauê TV. Semanalmente, vídeos motivacionais são captados e lançados no seu site oficial (WWW.paue.com.br). “Conviver com o Pauê é diferente porque é uma motivação diária. Não é todo dia que a gente acorda motivado, mas ele acaba sendo em exemplo. E não é muito o perfil dele querer dar exemplo, mas acontece de maneira natural”, diz.

A pedra no caminho pode ser um diamante / Pode ser que ela me atrase / Pode ser que eu me adiante. Os versos são de Gabriel O Pensador, na música Cavaleiro Andante, de 2005. O rapper carioca dedicou essa música a Pauê, depois de conhecer a sua história por um programa de tevê. Gabriel entrou em contato com a produção da emissora e enviou um email ao atleta, estreitando ligações. Inspirado pela história do garoto, passou, meio informalmente, a divulgar os feitos de Pauê. “Uma vez fui fazer um show no Guarujá e lembrei de convidá-lo. Fiz um improviso sobre ele numa música que fala de surf, ele ficou todo orgulhoso. Ele consegue transformar em palavras uma experiência muito forte que teve. Tem habilidade e inteligência para traduzir isso pra quem tá de fora e conseguir inspirar pessoas”, diz Gabriel, que é um dos personagens do documentário O passo de um vencedor. Dirigido po Fabio Cappellini, o filme será lançado no fim do ano, com incentivo da Lei Rouanet, e é baseado no livro Caminhando com as próprias pernas, que Pauê escreveu em 2008.

Hoje, o esportista está vivendo uma de suas grandes fases. Prestes a se casar – ele namora a arquiteta Verena há oito anos -, realizar um grande desafio de canoa e lançar o filme, ele sonha em poder montar no Brasil uma entidade a exemplo a CAF, que auxilie atletas deficientes e organize grandes eventos, afim de aumentar o bem estar, auto estima e qualidade de vida. Ao atravessar aquela linha de trem desativada, Pauê transformou sua vida e de seus familiares. Ao escolher o caminho da felicidade, conseguiu ir além. “Em vários momentos eu me perguntei porque isso aconteceu comigo. Mas raiva mesmo, nunca senti. Acho que tive melhor interpretação de todas, consegui enxergar com toda força que o acidente era uma nova chance. Assim anulei qualquer mal criação futura com a vida”.



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