terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A grande travessia *

*Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Mais #12, em dezembro de 2011.

A grande travessia

Quatro brasileiras enfrentaram o maior desafio para quem nada em águas abertas: atravessar o Canal da Mancha. Frio, escuridão e fortes mudanças climáticas fazem da prova a mais difícil do mundo

Por Camila Alam


Todo nadador que se aventura por águas abertas tem um grande sonho: atravessar o canal da Mancha, a faixa de oceano Atlântico que separa a Inglaterra da França. Com aproximadamente 563 quilômetros de comprimento, no total, e até 240 quilômetros de largura, dependendo do ponto, sua parte mais estreita – onde as travessias a nado costumam ser realizadas – tem 34 quilômetros de extensão em linha reta entre a cidade de Dover, na Inglaterra, e Calais, na França. Ou seja: ida e volta somam quase 80 quilômetros, com profundidade de até 120 metros. Frio extremo, escuro e fortes mudanças climáticas fazem desta a prova mais difícil do mundo.


Nada disso foi suficiente para deter as quatro nadadoras paulistas que se reuniram para cruzar o estreito no mês de junho. Juntas, a personal trainer Marta Izo, 41, a empresária Luciana Akissue, 34, a executiva Giuliana Braga, 39, e a advogada Priscila Santos, 32, chegaram aonde nenhuma outra equipe feminina de revezamento no mundo chegou. Foram 13 meses de preparação e muito treino. Ao finalizarem a ida, bateram o recorde de 8 horas e 22 minutos. Ao término da volta, somaram 18 horas e 42 minutos no total, o tempo mais rápido já realizado por uma equipe feminina.


Atravessar o canal da Mancha virou uma tradição desde que o capitão inglês Matthew Webb realizou o feito pela primeira vez, em 1875. Ele realizou um percurso em 21 horas e 45 minutos, de Dover a Calais. Em 1927, a Channel Swimming Association foi fundada para orientar e acompanhar atletas que desejassem realizar a travessia, entidade responsável pela organização e cronometragem até hoje. De lá pra cá, nadadores de todo mundo se inscrevem para realizar a prova, seja individualmente ou em revezamento, e apenas 10% dos inscritos conseguem chegar ao final.


Quatro por quatro


Frequentadoras do circuito de provas nacionais, as quatro são nadadoras de longa data. Uma delas, inclusive, já foi longe: em 2006, a professora de educação física Marta Izo se tornou a quinta brasileira a completar a travessia do canal da Mancha – sozinha. Em 2010, durante uma conversa com a amiga Priscila Santos, hexacampeã da travessia 14 Bis Santos-Bertioga (25 km), ambas tiveram a ideia de fazer revezamento 4x4 em grande estilo, partindo da Inglaterra em direção à França. Convocaram Giu e Luciana, outras atletas do circuito de mar aberto que também já pensavam no desafio. Giuliana está entre as três melhores atletas do Campeonato Paulista de Maratonas Aquáticas, de 2008 a 2010, e Luciana ganhou a Travessia dos Fortes em 2009, no Rio de Janeiro. Com a equipe formada, fizeram o projeto, conseguiram patrocínio e elegeram como treinador o bicampeão da prova Igor de Souza, 48 anos, atual diretor técnico da seleção brasileira de maratonas aquáticas. Ele teria como auxiliar Agnaldo Arsuffi, outro experiente treinador e consagrado o mais rápido no Canal da Mancha entre 1996 e 1997.


Um ano antes da data prevista para a prova as meninas passaram a treinar diariamente. Revezaram-se entre piscina, trabalho, nutricionista e musculação. Nas madrugadas de sexta para sábado, o treino era coletivo e acontecia na represa Billings, em São Paulo, para que elas se acostumassem à escuridão. “À noite a gente não enxerga absolutamente nada e isso mexe muito com o psicológico. É assustador”, conta Martinha.

Foram mais de 1.300 quilômetros nadados no decorrer do treinamento. Uma vez agendado o dia com a Channel Swimming Association, cada equipe tem uma semana para tentar. “No canal você está brincando com a vida o tempo todo e percebe que ele pode te consumir”, afirma Priscila. O termômetro na água marcava em média 14 graus, 3 a menos do que o esperado. “Quando chegamos lá, a gente só comia, treinava e dormia. Tivemos de nos ajudar bastante a controlar a ansiedade”, lembra Luciana.

A largada foi dada em 27 de junho, dia quente e com pouco vento. Giu foi a primeira a cair no mar, seguida por Priscila, Luciana e Martinha, que se revezaram a cada hora. A certa altura, Igor e Agnaldo viram a possibilidade de bater o primeiro recorde mundial na ida. O que até então não era considerado objetivo passou a ser a maior meta do grupo. Luciana, na água, apertou o ritmo. Martinha e depois Giu seguiram forte, até que Igor levantou a placa “800 metros para França, força!”. Ao chegar em solo francês, Giu pisou na areia e ouviu a buzina, confirmando que haviam batido o recorde. As meninas conquistaram a França em 8 horas e 22 minutos. Só faltava o retorno. “A volta parecia fácil após uma ida tranquila. Continuamos a nadar firme”, lembra Giu.

No retorno em direção à Inglaterra, o cronômetro já marcava cerca de 13 horas de prova quando um dos juízes se aproximou do treinador para dar a má noticia: elas haviam se afastado 2 milhas da costa e, caso não conseguissem voltar, seriam desclassificadas. Igor pediu a organização meia hora para consertar o erro e realizou “uma estratégia kamikaze”: as meninas deveriam nadar contra a corrente, sem regredir. A corrente estava prevista para mudar em breve e o rumo seria acertado. A previsão deu certo: algumas milhas depois, elas entraram novamente no eixo. Algum tempo foi perdido, mas os juízes aprovaram a mudança e deixaram que continuassem na prova. “Nessa hora, confiei nas meninas. Sabia a força que elas tinham. Elas também foram muito disciplinadas e acataram minhas decisões”, lembra o treinador.

Faltando cerca de 3 quilômetros para o final, Luciana caiu na água com a tarefa de quebrar mais uma corrente, nadar pesado e conquistar o recorde. “Era enorme a torcida no barco e também pela internet, já que todo percurso estava sendo transmitido ao vivo”, narra Giu. Começava a chover e os pingos de água se misturavam às lágrimas. Ao pisar na areia, Luciana levantou os braços e ouviu a buzina. Pela primeira vez na história, um grupo de quatro mulheres havia conquistado o Canal da Mancha em tempo inédito: 18 horas e 42 minutos. Cheia de orgulho, Giu avalia a dura prova de resistência: “Travessia todos fazem na vida ao ter um filho ou mudar de emprego. Mas as pessoas não costumam reconhecer sua própria força e suas glórias. Só que isso nos deixa mais fortes ainda”, garante.