quarta-feira, 4 de julho de 2012

para todos*


* originalmente publicada na Revista Mais #15 (junho/2012)

POR CAMILA ALAM 

Não é de hoje que os movimentos artísticos flertam com questões sociais e políticas. A partir do modernismo e com força ainda maior desde a década de 1960, a arte passou a se pautar por questões críticas que moviam a sociedade, promovendo o debate e o ativismo muito intrínsecos a questões estéticas. No mundo em que vivemos hoje, onde há cada vez mais espaço para o individualismo, o papel do artista talvez tenha se tornado o de articulador social, aquele que não só trabalha com a linguagem em si, mas usufrui dela para também discutir o mundo em que vive, se possível, transformá-lo. “O artista que não tem uma vocação social hoje está alienado como pessoa, antiquado”, diz Baixo Ribeiro, sócio fundador da galeria Choque Cultural, de São Paulo.

Para o professor Miguel Chaia, da PUC-SP, a arte hoje envereda por lugares antes não permitidos, fato que influencia diretamente a produção criativa. “O atual confronto com a modernidade, a quebra de fronteiras entre suportes, linguagens e áreas de conhecimento, além da aproximação entre camadas de cultura, permitem que a arte atual engendre por lócus de novas experimentações estéticas, acopladas à tensões sociais existentes em torno do artista”, diz, em seu texto A Arte entre a Autonomia e a Instrumentação, de 2007. Neste sentido, não há como pensar em um artista contemporâneo que não associe sua obra a uma questão social ou política. Ou ainda, que não pense o mundo em que vive para tentar fazer dele um lugar melhor. Monica Nador, 57 anos, Elisa Bracher, 47 anos, Daniel Melim, 33, e Thiago Mundano, 26, são exemplos de artistas de diferentes gerações, bem sucedidos dentro do mercado contemporâneo, que, cada um a sua maneira, viram no engajamento social uma maneira de utilizar a arte como meio transformador da sociedade.

Formada em Artes Plásticas pelas Fundação Armando Alvares Penteado, Elisa se apaixonou pela gravura no último ano da faculdade, período em que estudou com Evandro Carlos Jardim, mestre na arte de ensinar e criar. “Nesta época, queria que as linhas dos meus desenhos se sustentassem sozinhas, então comecei a fazer esculturas”, lembra. E foi muito por causa de suas esculturas que nasceu, há 11 anos, o que hoje é chamado de Instituto Acaia, localizado na zona oeste de São Paulo.

Próximo ao Ceagesp, maior entreposto alimentício da América Latina, um galpão servia de ateliê para a artista. Ao redor, duas favelas, a do Nove e a da Linha. “Como faço estruturas grandes, tive que encontrar um lugar pra trabalhar onde eu pudesse entrar com caminhão. Naquela época ninguém conhecia muito a região”, diz. Devido a criação de grandes esculturas, Elisa montou uma estrutura quase industrial no galpão, onde precisaria de mão de obra para ajudá-la com suas grandes criações em madeira. “Quando vi a molecada na rua, convidei-os para uma aula de marcenaria por semana”.

Com o passar do tempo, Elisa sentiu necessidade de ampliar o projeto, oferendo lanche ou outras atividades que pudessem receber também as mães dessas crianças, como oficinas de costura. Assim, meio por acaso, a artista começou a montar o que hoje é um complexo que atende cerca de 400 pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos, e possui dois braços interligados, um voltado ao ensino pré-vestibular e outro localizado no Pantanal (MS) . O Instituto Acaia (que significa útero, em tupi), ainda se localiza no mesmo galpão e oferece não só oficinas de marcenaria, mas também de bordado, dança, xilogravura, música, culinária e vídeo. Além de biblioteca, atendimento psicológico e jurídico, aulas de capoeira e bijuteria.

“O que temos aqui não são cursos de arte. Estamos usando o instrumental de arte e o potencial de reflexão e abstração que a arte nos dá para ajudar esses meninos a se estruturarem internamente”, diz Elisa. Para que este contato fosse produtivo, a artista viu a necessidade de manter relações com as duas comunidades mais próximas da maneira mais clara e direta possível. “Uma coisa determinante para aumentar o número de alunos foi esperar um tempo grande para que a comunidade passasse a confiar na gente. Esse foi o grande passo que demos e a coisa que mais preservamos hoje em dia”. Para isso, foram criados dois “barracos-escola” em cada uma das favelas atendidas pelo Instituto. O mais antigo é o da favela do Nove, criado em 2005, e o mais recente fica dentro da Favela da Linha, instalado desde 2009. Nesses galpões inseridos nas comunidades, são realizadas algumas oficinas no local e o trabalho do Instituto pode ser divulgado ainda mais internamente. É uma maneira de quebrar o gelo, já que ainda é vista certa resistência por parte da população em frequentar as oficinas.

Com o trabalho do Instituto já bem encaminhado, Elisa passou a se dedicar também ao cinema. Um de seus projetos inclui viajar para o Nordeste e visitar a família de alguns dos alunos que frequentam o Instituto, com quem mantém relação de cumplicidade. Com algumas horas já filmadas, a artista pretende lançar um documentário com o material. “Aqui é muito diferente da realidade que eu fui criada, mas o meu meio é esse aqui, é o que eu gosto.”

Foi também longe do seu ambiente natural que outra artista percebeu a força de sua arte. Natural de São José dos Campos, interior de São Paulo, Mônica Nador também se formou em Artes Plásticas pela FAAP, depois de uma passagem pela arquitetura. “Na faculdade, entrei nesse universo da arte que é de individuação profunda, descobri que estava mergulhada em um meio muito conservador e comecei a questioná-lo”, diz. A partir do mestrado, pela Universidade de São Paulo, a artista percebeu que poderia levar a arte a uma esfera menos individual e mais social e coletiva. Começou então, de maneira quase experimental, a pintar muros da cidade, gerando, segundo sua definição, uma “arte útil”.

Com o projeto Paredes Pinturas passou por São Paulo, Bahia, Amazônia, Cuba, México, para finalmente voltar à capital paulista. Desde 2004, Mônica mudou-se para um dos bairros mais violentos da cidade, o Jardim Miriam, na periferia sul de São Paulo. Lá iniciou o Jardim Miriam Arte Clube, também conhecido como JAMAC, projeto que apresenta aos jovens do bairro maneiras e alternativas de trabalhar com arte.

Por meio principalmente de oficinas de stencil, a artista ensina aos jovens como ampliar seus horizontes culturais, que mais tarde são compartilhados com toda comunidade. Na oficina, eles aprendem a fabricar e aplicar a técnica do stencil, para depois utilizá-la em muros ou tecidos. Muitas das casas, escolas e comércios do bairro tem suas fachadas pintadas pela artista e seus “ajudantes”. As oficinas também geraram os frutos de sua última exposição, intitulada Autoria Compartilhada, realizada em novembro passado pela galera Luciana Britto, a mesma que representa a artista. Na exposição, a artista apresentou padronagens criadas por ela e pelos jovens do JAMAC.

O clube, hoje denominado Ponto de Cultura pelo Governo Federal, também apresenta mensalmente o Café Filosófico e o Cine Jamac, que reúne a comunidade para discutir diferentes temas em torno da cultura, seja por meio do debate ou do audiovisual. Para o professor Miguel Chaia, este projeto “levanta questões que remetem ao significado da origem da arte, quando não havia ainda separação entre arte e sociedade, arte e religião, produtor e obra”. Fã de pensadores brasileiros como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, a artista busca que a comunidade possa, por meio da arte, se autorrepresentar. Para isso, aposta num projeto que una stencil e comércio. Dentro das oficinas, criam estampas em tecido que depois servem para encapar cadernos, fichários ou pastas. “O meu maior desejo é ver o projeto acontecer de verdade, que possa realmente gerar empregos e se sustentar sozinho. Aos poucos está rolando”, diz.

O aumento da autoestima da comunidade é, aliás, uma das principais mudanças notadas por esses artistas. Thiago Mundano também é desses que acreditam no poder transformador da arte e percebe isso claramente no trabalho em que vem realizando pelos últimos anos. Anônimo até pouco tempo e bastante reservado, o grafiteiro já espalhou pelos muros da cidade diversas frases que se referem à questões ligadas a vida dos moradores de São Paulo. Trânsito, meio ambiente e desigualdades sociais e políticas são temas frequentes de suas obras. Por suas andanças pela cidade, passou a conviver diariamente com moradores de rua e catadores de material reciclável. Um dia, ao cruzar com um desses catadores que puxam carroça, resolveu pintá-la com desenhos e frases sobre reciclagem. Desde então, já se passaram cinco anos e Mundano pintou o veículo de 160 catadores, originando o projeto Pimp my Carroça.

Inspirado nos programas de televisão que “pimpam”, ou seja, fazem uma bela reforma, em automóveis, o artista lançou o projeto em março deste ano por meio de colaboração coletiva na internet. Assim, todos que apoiam a ideia, podem contribuir com a verba que quiserem. O projeto Pimp my Carroça não só pinta as carroças, como também as transforma em veículos mais seguros para transitar pela cidade, com marcas de sinalização, espelhos e freios. Além disso, o catador de material ainda passa por avaliação médica de um clínico geral, um oftalmologista e um especialista em dependência química, além de ganhar alimentação e uma camiseta do projeto. “Acredito que esta seja uma maneira de chamar atenção para o trabalho dos catadores, que são hoje responsáveis por recolher 90% do lixo reciclável da cidade de São Paulo. Muitos estão a margem da sociedade, mas eles são agentes importantes para a sustentabilidade”, diz Mundano, notando que, hoje, apenas 1% das 17 mil toneladas de lixo da cidade é reciclado. “É um dado vergonhoso”.

Mundano começou a se dar conta destes e outros dados há cerca de cinco anos, quando deu inicio as atividades com os catadores. De lá pra cá, tornou-se quase especialista no assunto, do qual fala com naturalidade e propriedade. Por isso, foi convidado a participar do ciclo de conferências TEDx, que acontece em diferentes partes do mundo e discute ideias relacionadas à tecnologia, design e entretenimento. “Agora, todo lugar que eu vou, começo a reparar no lixo. Em Salvador, por exemplo, estão a anos luz à frente de São Paulo”, diz, referindo-se ao lixão de Canabrava, que hoje é fonte de renda de centenas de famílias soteropolitanas graças à parcerias bem sucedidas entre ONGs e o governo do estado. “Esta é uma luta que tomei pra mim, mas na verdade é de todos nós. Ainda existem muitas peças desencaixadas, porque precisamos ainda mudar o pensamento da sociedade, aprender a desperdiçar menos. Mas acredito, com certeza, que é função da arte promover a mudança, ela pode ser realmente um mecanismo para o beneficio social, porque gera a reflexão”, diz.

É também por meio da arte e da reflexão que outro grafiteiro, Daniel Melim, começou a desenvolver o que hoje chama de Projeto Jardim Limpão, criado por ele em 2006. Representado pela galeria Choque Cultural, de São Paulo, Melim é hoje um dos mais prestigiados artistas da chamada street art nacional, hoje em alta entre colecionadores e amantes de arte contemporânea. Criado no Jardim Leblon, em São Bernado do Campo, vizinho ao Limpão, Melim sempre frequentou o bairro, o que lhe deu liberdade para, já adulto, iniciar espontaneamente o projeto. O que começou com algumas reuniões esporádicas para ensinar crianças a técnica do grafite, ainda em 2006, hoje se apoia em aulas semanais sobre linguagens visuais, ministradas pelo artista na sede da comunidade para cerca de 20 jovens, entre 7 e 15 anos. As aulas aliam o aprendizado dentro do ateliê com a pratica nas ruas e vielas do bairro.

“No começo era muito aleatório, as oficinas aconteciam quando dava. Mas com as aulas, semanais o projeto ganhou mais força. Hoje estamos mais bem organizados e a molecadinha está mais consciente”, diz Melim. “Também crescemos ao ter maior abertura com os pais. Hoje eles vem nos procurar pra falar, por exemplo, que o filho não está indo bem na escola”. Em 2010, o projeto Jardim Limpão foi selecionado pelo programa para a valorização de iniciativas culturais do município de São Bernardo do Campo, o VAI-ABC. Por meio do VAI e por investimento próprio, o artista mantém o projeto, que às vezes também recebe doações de amigos. Alguns dos trabalhos da turma de alunos de Melim já foram expostos no exterior, com a ajuda da ABC Trust, ONG americana focada em ajudar crianças brasileiras em condições vulneráveis.

Filho de pai metalúrgico e mãe professora, Melim é formado em Educação Artística, pela FATEA de São Bernardo, e começou a carreira como arte educador. Sonha, por exemplo, com o dia que um de seus atuais alunos possa dar continuidade ao projeto. “Tento passar pra eles o máximo de conteúdo, para que eles se tornem multiplicadores”, diz. Para Melim, o projeto o leva a questionamentos pessoais e influencia diretamente na sua produção artística. “Com o convívio, acabo vendo várias situações do bairro, como a maneira como violência ou o trabalho afeta a vida deles. Quando chego em casa para pintar, acabo trazendo um pouco disso tudo. Sou muito grato pelo projeto por me questionar sempre e não me manter estático”.

Baixo Ribeiro complementa esta fala de Melim ao dizer que o questionamento é a maior função do artista no mundo de hoje. “A função do artista é trabalhar com a linguagem, mas não somente. O que se tem que fazer agora é aproveitar os novos meios, falar com pessoas e públicos que não são ouvidos, focar a visão na inclusão”, completa. “A arte envolve qualquer pessoa, independente da língua que ela fale ou da classe social. Historicamente, tratamos a arte como coisa de elite, por isso houve um processo de afastamento da pessoas da arte. Isso foi uma escolha de mercado para gerar maior valorização”. Para o curador, estamos hoje invertendo este processo, trazendo cada vez mais a arte para esferas antes não atingidas. “Para artista não interessa quem está vendo, se é o morador de rua ou um rico colecionador. O prazer, no final, está em que qualquer pessoa curta”.

domingo, 1 de julho de 2012

miranda taxi foto*


*originalmente publicada na CartaCapital, em 2010. 

POR CAMILA ALAM 

Foi no bairro paulistano da Vila Madalena que Antonio Miranda nasceu, viveu e se dedicou ao trabalho de taxista, ofício que sustenta sua mulher e seus dois filhos.  Graças ao bairro, também, deu chance a um desejo antigo, o de tornar-se fotógrafo. Hoje, aos 49 anos, firma ponto na esquina das ruas Wisard e Fradique Coutinho, esta ultima testemunha de sua infância no bairro, numa época em que estava longe de ser uma das predileções da boemia paulistana.

Recheado de artistas e estúdios fotográficos, o bairro trouxe ao banco de trás de Miranda alguns experientes profissionais que o ajudaram nas primeiras tentativas, por volta de 2006. Curioso e atento a fotografia desde adolescência, Miranda questionava, pedia dicas e era atendido. Ganhava livros e elogios, mas com as críticas aprimorou o olhar. Fez do seu sustento, sua escola, seu estúdio e sua divulgação. 

É um fotografo a moda antiga. Seu equipamento predileto é uma yashica x, modelo encontrado depois de percorrer feiras de antiguidade como as da praça Benedito Calixto e a do bairro do bexiga.  “Tava lá jogada”. Protegida em uma bolsa térmica, a pequena máquina e seus rolos de filme acompanham o taxista pela cidade, bem escondidas embaixo do banco do motorista. 

Prédios antigos, árvores retorcidas, reflexos da cidade. Os objetos de atração do taxista passam diariamente por sua janela e são devidamente observados. Se, durante uma corrida, passa por ambiente que chama sua atenção, Miranda segue ao destino,  deixa o passageiro e volta para fotografar o que quer que seja. São nas viagens mais longas que cliques descompromissados acontecem fora do taxi. Seu primeiro ensaio, surgiu depois de deixar uma passageira no convento da boa vista. “Me chamava atenção as arvores com troncos exóticos, retorcidos, ensaios de sombra e luz e gramados. Eu ficava lá fotografando, até as freiras me colocarem pra fora”. 

Agora também olha para a cidade, buscando arquitetura antiga, escadas inusitadas. Olha para os cemitérios, onde se inspira na arte tumular. No centro velho, começou o projeto que chama “cidade dentro da Cidade”, onde dedica a série aos prédios antigos e aos moradores de rua que dormem aos seus pés. Iniciado o projeto, ainda não conseguiu terminar. “Me abalou demais. Quem tem olhar e consegue ver esses problemas, sabe que vivemos numa cidade de mentira. O sistema assistencial é mentira, a prefeitura é uma farsa”. 
Em uma das poucas inserções ao retrato, Miranda conheceu o morador de rua Giovani. Sem máquina a mão, registrou o rosto do mendigo com o celular, que possui uma câmera simples de 3 megapixels, cuja ampliação chega até 30x45. “Acho que colocaram a lente errada aqui”. Desde então, sai as ruas registrando tudo no celular, imagens que depois posta no blog (HTTP://mirandataxifoto.blogspot.com) que criou com a ajuda de fotógrafos amigos da vila madalena.  “De computador não entendo nada. Montaram o blog e me ensinaram a atualizar”. Miranda também não usa Photoshop ou qualquer outro programa de tratamento de imagens. “Minha essência é a simplicidade, não tenho recursos para fazer foto”. 
Pelo celular, entrou na era da digitalização. Aprendeu  que pode gastar menos e treinar mais. Com o filme, passou a ser mais seletivo e buscar resultados. Hoje, diferencia as duas maneiras de fotografar. “Existe a foto e a fotografia. A fotografia parece coisa boba, mas ela tem algo mais que uma simples foto.”

reflexões*

* publicada originalmente na +Soma #25


POR CAMILA ALAM

Realizado permanentemente pelo Itaú Cultural, o projeto Ocupação já contemplou personalidades tão plurais quanto o diretor de teatro Zé Celso, o artista plástico Nelson Leirner ou o músico Chico Science. Com o intuito de aproximar o visitante da obra e do processo de criação do artista, o projeto expõe Rio Oir, do carioca Cildo Meireles, até 02 de outubro [de 2011].

Um dos maiores artistas de sua geração e importante nome da arte contemporânea internacional, Cildo costuma convidar o visitante a refletir sobre questões de ordem política. Desta vez não é diferente. Rio Oir é uma obra sonora, um disco de vinil que de um lado registra o som de quatro principais bacias hidrográficas do Brasil e de outro apresenta o som de risadas e gargalhadas. O visitante passeia pela ocupação, ouve os dois lados do disco e entende o processo de criação da obra por meio das fotografias de Edouard Fraipont, registros da viagem feita pelo o artista e sua equipe (iniciada em 2009) às bacias nacionais – elas estão no Distrito Federal, Amapá, Paraná e na fronteira entre os estados Alagoas e Sergipe. 

Pensado originalmente em 1976, o LP tomou forma somente agora e seu processo de criação fez o artista mergulhar na questão das águas. “Encontramos nascentes natimortas, o que foi muito impactante. O caso do Rio São Francisco talvez seja o mais emblemático, um rio que se tornou muito doente nas últimas décadas”, diz o artista que também percebeu, ainda que tardiamente, o impacto causado pelas usinas hidrelétricas nestas e em outras regiões. “Durante minha vida, até por ignorância mesmo, defendi as usinas hidrelétricas como fonte de energia. Mas olha o estrago que ela faz ao ser implantada. Boa parte dos rios já estão altamente contaminados por substâncias como o mercúrio”.

É desta forma que o artista faz seu alerta e encaminha esta peça a um questionamento político surgido naturalmente. “Originalmente queria apenas trabalhar a inversão do rio e do riso. Mas se transformou”, diz. Rio Oir é, nas palavras do curador Guilherme Wisnik, um palíndromo, ou seja, uma frase reversível. Desta forma, Cildo constrói uma relação de espelhamento, que remete a própria estrutura do vinil e convida o visitante a oir (“ouvir”, em castelhano) o rio e o riso.  “No fim, é como se os dois lados fossem um só: rio, riso, choro e chuva”, completa o curador. Ao som dos rios, o artista incluiu o barulho de águas residuais, como torneiras, descargas, goteiras, bebedouros. “Muito em breve todas as águas fluviais do Brasil serão, de certa forma, residuárias, pois elas já estão sendo conspurcadas na fonte”, diz o artista.

Este não é o primeiro trabalho sonoro de Cildo Meireles, ao contrário, os sons são intrínsecos a sua produção desde a década de 1970, seja por meio de aparelhos ou pela própria ação do visitante. Mebs/Caraxia (de 1970), Sal Sem Carne (1975) e Babel (2001) são alguns dos projetos essencialmente sonoros do artista, assim como Liverbeatlespool, criada para a Bienal de Liverpool de 2004, onde sobrepõe canções do quarteto inglês as transformando em ruídos.  Na contramão, há sons produzidos pelo próprio visitante, como na instalação Através (1989), em que o público que pisa sobre um chão de vidro estilhaçado, provocando barulhos que tão tom a obra.  

De uma maneira ou de outra, o que Cildo Meireles faz é levar o visitante a uma experiência audiovisual e estética onde geralmente transmite uma mensagem de protesto, ainda que sutilmente. Do seu caderninho de anotações, companheiro fiel de jornada desde os primeiros anos de sua produção, saem estes e outros alertas que fazem o espectador refletir não só sobre a arte, mas sobre o próprio mundo ao seu redor.