quinta-feira, 11 de julho de 2013

viver sem carro

*publicada originalmente na revista Mais  nº 20

O trânsito é um problema para 68% dos paulistanos, mas cada vez mais moradores querem conhecer a cidade que vai além dos congestionamentos

Por Camila Alam

Os longos congestionamentos na cidade de São Paulo tem feito muitos cidadãos buscarem alternativas para fugir do trânsito na cidade, seja utilizando o transporte público, comprando uma bicicleta ou apostando na caminhada. Segundo pesquisa do Instituto Ipespe, 68% dos paulistanos apontam o trânsito como o principal problema da cidade e a frota de veículos na capital já chega a 7 milhões – mais da metade do número de habitantes. Para Leão Serva, autor do guia Como Viver em São Paulo Sem Carro (ed. Neutropica), colaborar ou não para o congestionamento da cidade é uma opção individual. “Ainda que milhões de pessoas permaneçam sob o signo do congestionamento, mais e mais adotam saídas individuais para usufruir os benefícios da redução do trânsito, abandonando total ou parcialmente os veículos particulares”, diz.

Entre estas as milhares de pessoas que optam por um cotidiano mais leve em São Paulo, está Sérgio Kalil, sócio do restaurante Spot, que há 14 anos optou por ser pedestre. Desde então, nunca mais teve um carro na garagem e faz todos os seus programas a pé, até os percursos mais longos. “O segredo é calçar um bom tênis e manter a disposição”, diz. Sergio fez essa escolha quando mudou-se para o bairro dos Jardins, na zona central de São Paulo. Próximo aos restaurantes dos quais era sócio na época (além do Spot, ele também dirigia o Ritz), colocou as contas no papel e abandonou de vez o trânsito. “Já comprei o apartamento neste local propositalmente. Não foi coincidência ter vendido o carro no mesmo dia em que me mudei”. O empresário gosta de ressaltar que, em termos de tempo, uma caminhada pode equivaler a algumas horas perdidas em um congestionamento. Começar a perceber a cidade com outros olhos, já que pelas calçadas podem se esconder lugares que nem sempre vemos quando passamos de carro, também é outra vantagem.

Apesar de acostumado, Sergio lembra que também não é fácil ser pedestre em São Paulo. Calçadas esburacadas, falta de faixas de pedestres e passarelas podem ser empecilhos. “Uma vez fui andando até o estádio do Morumbi assistir um jogo. Chegando próximo, não consegui fazer uma travessia num local sem passarela. Tive que voltar e pegar um táxi”, comenta, rindo. As caminhadas também influenciaram Sergio a parar de fumar. “Ano passado fiz 50 anos, dos quais 30 fumando. Agora, também caminho melhor”. Uma nova filial de seu Spot será aberta no Shopping JK, cerca de 10 quilômetros de distância da sua casa. O trajeto, garante, será a pé.

DUAS RODAS

Conhecer a cidade por outro ângulo também é um dos argumentos dos ciclistas, cada vez mais presentes em São Paulo e em outros grandes centros urbanos. A fotógrafa Pamella Gachido, de 26 anos, decidiu trocar o carro pela bicicleta há quase um ano. Os custos com a manutenção do automóvel e algum tempo perdido no trânsito foram fatores que levaram à escolha, aliados à experiência que viveu fora do país. Morando em Nova Iorque por um ano, aprendeu por lá a se locomover de bicicleta. “Minha estadia fora do país me fez redescobrir São Paulo. Voltei decida a tentar viver sem carro e percebi que aqui, muitas vezes, o usamos como uma desculpa, por preguiça mesmo”. Vale lembrar que São Paulo tem hoje 230 quilômetros de estrutura cicloviária, dos quais apenas 60 são permanentes. Os 40 quilômetros de ciclofaixa funcionam apenas nos fins de semana e feriados para lazer.

O trajeto diário de Pamella de casa ao trabalho tem cerca de 10 quilômetros, com muitas subidas e descidas. Por isso, ela optou por uma bike elétrica com pedal assistido, que a impulsiona nas ladeiras acima. “A questão geográfica me fez optar por este modelo, já que não queria chegar muito suada ao trabalho ou virar uma grande esportista”, diz. Além do pedal assistido, a bicicleta de Pamella é dobrável, o que a ajuda quando precisa pegar transporte público ou uma carona por causa da chuva. Hoje, a fotógrafa demora cerca de 20 minutos para atravessar dois bairros. “É claro que há dias que não dá vontade de pedalar, mas de carro demoraria pelo menos o dobro do tempo, sem contar os imprevistos. Agora percebi que toda vez que preciso andar de carro, fico mal humorada”, diz.

É PÚBLICO
Ter um carro está fora dos seus planos futuros e assim também pensa o designer Panais Bouki. Desde que saiu da casa dos pais para morar sozinho, com 21 anos, decidiu não comprar um automóvel, como a maioria dos jovens nessa idade costumam fazer. Ao invés disso, resolveu mudar-se de Interlagos (no extremo Sul da cidade) para o centro, onde teria fácil acesso a diversos meios de transporte. Hoje, com 37 anos, mantém sua postura e vê percebe que há um movimento ao seu redor. “Pelo menos no meu círculo de amizade, vejo que muitas pessoas estão desistindo do carro”, diz. Panais trabalha em casa, mas precisa com frequência sair para visitar agências ou clientes. Usa muito as linhas de metrô que saem do centro, além dos corredores de ônibus. “Tive a sorte de sempre trabalhar em lugares próximos a linhas de metrô. Pra mim, a única desvantagem de não ter um carro é ter que viajar para médias distâncias”, diz. Quando volta a Interlagos para visitar os pais, demora cerca de 1 hora e meia de ônibus. Além disso, avalia que pegar um táxi – vez ou outra – não faz mal a ninguém.

A jornalista Annamaria Marchesini também pensa assim. Moradora do centro da cidade, no bairro Santa Cecília, deixou o carro de lado há cerca de quatro anos e todos os dias vai trabalhar de metrô e trem. “Além de nunca ter gostado de dirigir, andar de carro começou a me incomodar. Um dia resolvi experimentar o transporte público e gostei”. O percurso diário de Annamaria é um pouco longo. São 14 quilômetros da estação de metrô no centro até a agência em que trabalha, no bairro do Brooklin (zona sul da capital). O trajeto demora, em média, 40 minutos, mas duraria muito mais se ela usasse um automóvel. “Uma das maiores vantagens de usar o trem é que sei exatamente quanto tempo vou demorar para chegar ao trabalho. Por isso, posso me programar e aproveitar melhor o dia”, diz.

Para Annamaria, outra maneira eficiente de se transportar por São Paulo é aderir à boa e velha carona. “É uma ótima maneira de usar racionalmente o carro em São Paulo. Fico impressionada com a quantidade de automóveis parados nos congestionamentos e que transportavam apenas uma pessoa”, diz. Pensando nisso, sites como Caroneiros, Projeto Carona ou Carona Solidária ajudam a colocar em contato pessoas que desejam dar ou pedir carona em diferentes partes do país. O ato de compartilhar, seja as ruas ou o próprio veículo, tende a ser uma das soluções mais eficazes para melhorar o trânsito nas grandes capitais. Depois de reunir as dicas daqueles que deixaram o trânsito de lado, Leão Serva avalia: “Pasmem os viciados em carro, eles são mais felizes agora”.

conectados com a cidade

*publicado originalmente na revista Mais nº 21

Espalhados por todo o país, cidadãos comuns mostram como a colaboração experimental pode criar novos modelos para cidades

Por Camila Alam

A ideia de gerar cidades mais unidas, bonitas e funcionais tem mobilizado diferentes grupos em todo país. Ações que vão desde a pintura de muros até a revitalização de espaços públicos são maneiras coletivas de tentar humanizar os grandes centros. Por meio de financiamento coletivo ou iniciativas privadas, uma centena de projetos se engajam para transformar, ainda que de maneira local, a realidade de cada um. Criadoras do projeto Cidades Para Pessoas, a jornalista Natalia Garcia e a artista plástica Juliana Russo percorreram o mundo em busca de ideias que tenham melhorado a cidades para seus habitantes. “Percebi que as iniciativas mais interessantes que vinham de movimentos organizados que, em caráter experimental, acabaram criando modelos replicáveis para toda a cidade”, diz Natalia.

Um desses projetos é o Curativos Urbanos, iniciativa de 6 amigos de São Paulo, que começou como uma ideia simples se expandiu voluntariamente para outras cidades do país. Há um ano, o projeto busca falhas no urbanismo, especialmente buracos e rachaduras nas ruas e calçadas, e preenche as imperfeições com curativos grandes e coloridos. A ideia é chamar atenção para os machucados da cidade com cor e bom humor, além de alertar os distraídos. Não é exagero. Segundo dados do Hospital das Clínicas de São Paulo, cerca de 300 acidentes com pedestres são causados por dia devido a má conservação das vias públicas. Desde 2012, os proprietários de calçadas mal cuidadas podem ser multados pela prefeitura, mas nem sempre a fiscalização se estende para áreas públicas. “Gostamos muito de caminhar pela cidade, descobrir novos lugares, usar praças e parques nas horas de lazer. Então percebemos como estávamos descontentes com as calçadas, por não poder ir e vir com cuidado e segurança”, diz a arquiteta Rafaella Wolf, uma das criadoras do projeto.

Para chamar a atenção para os machucados da cidade, o grupo escolheu um material reciclável e biodegradável, o EVA. Fizeram o molde dos curativos, espalharam pelos buracos da cidade e pelas redes sociais. O primeiro curativo guarda uma história simbólica. “Logo após ser colado, ele foi retirado por uma pessoa que passava por ali. Alguns metros mais a frente, lá estava o curativo colocado em um novo buraco. Ela entendeu o recado!”, diz Rafaella. Por meio das redes sociais, o recado foi espalhado também para outros lugares do Brasil e a ação chegou em cidades como Ribeirão Preto, Campinas, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Vitória da Conquista e até Roma, na Itália. O molde do curativo está disponível na página do grupo e pode ser feito por qualquer um. Para o coletivo, o rápido compartilhamento da ação atingiu o objetivo inicial do projeto: fazer a comunidade pensar no problema.

NO PONTO

Outro projeto que se expandiu de maneira grandiosa por meio das redes sociais é o Que Ônibus passa Aqui?, da produtora gaúcha Shoot the Shit, especializada em incentivar o engajamento, criação e financiamento de projetos positivos à sociedade. A ideia é bastante simples e surgiu de uma deficiência da secretaria de transporte público de Porto Alegre em não conseguir identificar as linhas de ônibus da cidade. O grupo espalhou pelos pontos de ônibus de diferentes bairros um adesivo com pergunta “que ônibus passa aqui?”. De maneira colaborativa, os passageiros dos pontos começaram a escrever o nome das linhas, o que se tornou útil não só para passageiros regulares, mas também para turistas e aqueles que pouco utilizam o transporte público. Com o sucesso da ação, a prefeitura resolveu apoiar o projeto financeiramente. “A gente está cada vez mais próximo da esfera pública. Tentando encontrar formas de juntar a força do povo com o poder que o governo tem. É na população que mora informação preciosa para soluções de problemas da cidade ”, diz Gabriel Medeiros Gomes, um dos idealizadores.

Hoje, muitos dos pontos de ônibus da capital gaúcha possuem os adesivos oficiais da prefeitura. Apesar disso, grande parte da ação se proliferou de verdade por causa da internet. Com o adesivo disponível no site, a ação já se espalhou por mais de 20 cidades brasileiras, mostrando que o problema não é apenas regional. Em Santa Maria, interior do estado, 70% das paradas de ônibus estão sinalizadas. “O Que ônibus passa aqui? deixou de ser um projeto apenas da Shoot The Shit e virou um projeto brasileiro. Totalmente autogerido, distribuído, em rede e horizontal. Sem líderes, sem certo ou errado, sem regras. Apenas um objetivo, fazer a vida das pessoas melhor”, diz Gabriel.

Fazer a vida um pouco melhor, ou pelo menos mais colorida, é o mote do projeto Color+City, idealizado pelos artistas Gabriel Pinheiro e Victor García, em parceria com o Google e mais um grupo de artistas voluntários. A ideia da ação é unir as pessoas que desejam pintar mutos àquelas que tem espaço para oferecer. Assim, um artista pode se voluntariar a fazer arte em uma parede cedida por outra pessoa."A ideia toda é deixar a cidade mais bonita, mais alegre. Acredito que esta é uma maneira bem interessante e inspiradora para engajar e conectar os donos de espaços urbanos com as pessoas que tem a arte como ideal de vida. Desta forma, juntamos ambas as partes e facilitamos este encontro", afirma Pinheiro.


Para participar, o dono do muro acessa o site e posta uma foto do muro que deseja ceder. O artista, por sua vez, escolhe a localização que deseja pintar e tem o direito de reservá-la por um tempo. A parceria com o Google permitiu a viabilização de um mapa próprio, onde os muros que estão disponíveis e os muros já pintados podem ser localizados. Mais de mil paredes já foram disponibilizadas em todo país e em algumas cidades no exterior. Pouco mais de cem já foram pintadas e outras centenas estão reservadas. “O principal para fazer essa ferramenta se consolidar são as pessoas. A gente quer que elas participem, pintem e contribuam pra uma cidade mais colorida”, complementa.


No site do projeto, artistas, jornalistas e apoiadores dão depoimentos sobre o trabalho. Para um deles, o jornalista Gilberto Dimenstein, fundador do site Catraca Livre e apoiador do projeto, o Color+City serve para conectar a cidade. “São Paulo é uma cidade feia, que as pessoas decidiram embelezar com as próprias mãos. Intuitivamente ou não, transformaram um medo numa forma de convivência e comunhão. Então, esse muro que separa passou a ser o muro que integra”, diz.


IDEIA NA CABEÇA


No bairro da Vila Madalena, em São Paulo, há um espaço público, bem escondido, em torno do córrego das corujas. Esta área, preservada pela prefeitura, mas com pouco recurso além de alguns bancos, foi a inspiração para moradores do bairro criarem o Projeto Coruja. A ideia é pensar, de maneira colaborativa, em novas formas de utilização do espaço público, gerando maior movimento em torno de um lugar para lazer e convivência. Em meio a reuniões, oficinas, criações de maquetes e muito debate, o projeto começa a sair do papel com fôlego dos próprios moradores. “É esse amor coletivo que vai trazer um pouco mais de vida para este espaço”, diz a artista gráfica Joana Lira.

Ao invés de optarem por um grande mutirão, os moradores decidiram dividir os voluntários em diferentes grupos. Assim, foram criadas frentes autônomas responsáveis por mobiliário, paisagismo e arte. “As reuniões teóricas às vezes são difíceis, mas necessárias”, diz a urbanista Renata Minerbo, uma das participantes do coletivo. Nelas, são decididos e planejados os próximos passos das ações, focadas em pequenas e gradativas mudanças, desde a criação de hortas até decks para descanso e maiores áreas com sombra. “É um processo muito interessante e vivo. Vamos errando, aprendendo e ajustando. A ideia é não terminar, mas dar continuidade enquanto for necessário”, diz Joana. Para Carol Ferrez, uma das idealizadoras, a ideia funciona para unir a comunidade. “É um projeto mais sobre pessoas do que sobre o espaço. Todos estamos precisando nos conectar”. 
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

te dedico



*originalmente publicada na revista Mais nº 18

Escrever dedicatórias em livros se tornou um gesto comum entre aqueles que presenteiam. Mas, muitas vezes, elas escondem mais histórias que um grande romance

Dedicar. Do latim, dedicare. A cada emprego, o verbo adquire definição diferente. As mais comuns talvez sejam oferecer, destinar. Mas também o vale para, poeticamente, devotar, tributar, até consagrar. Mais ainda, sacrificar-se por. Dedicar é demonstrar carinho, é provar, com gestos ou palavras, que há algo ali especial para alguém. São nos livros que as dedicatórias ganham lugar de destaque, sempre nas primeiras páginas. Endereçados a alguém, estes objetos de caráter tão afetivo ganham valor ainda mais especial. Desde a antiguidade, o gesto de dedicar é comum. Os mecenas, por exemplo, recebiam dedicatórias dos artistas que financiavam. Muitos pintores retratavam seus mecenas em suas obras, sempre em lugar de destaque. Nas letras, o agradecimento poderia estar embutido nas próprias linhas. Luís de Camões, por exemplo, dedicou em versos a epopeia Os Lusíadas ao jovem rei D. Sebastião. Mas este costume, trazido aos dias atuais, remete muito mais a um gesto carinho, trocado entre aqueles que se conectam, de alguma forma, ao objeto livro.

Dono de uma das maiores e mais importantes coleções particulares do Brasil, o empresário José Mindlin, morto em 2010, reunia em sua casa uma seleção especial de dedicatórias. Muitas delas, feitas por grandes autores ao próprio empresário. Sua neta, Lucia Loeb, reúne agora parte desta coleção no livro Tão Falada Biblioteca José e Guita Mindlin, a ser lançado pela EDUSP no começo do ano. O próprio nome do livro revela sobre o apego de Mindlin às dedicatórias. Quem conta é a historiadora Eloá Chouzal, responsável pelo texto que abre a edição. “Quando José Mindlin lançou sua autobiografia Uma vida entre livros, sempre que alguém o visitava ele dava o exemplar disponível em sua casa. A edição esgotou-se rapidamente e Cristina Antunes, sua bibliotecária, o alertou de que a biblioteca Mindlin corria o risco de ficar sem nenhum. Então, Dr. José fez, num dos livros, uma dedicatória à sua própria biblioteca, garantindo que ele, “marcado”, não seria presenteado a mais ninguém”.

Demonstrando carinho com a própria coleção, o empresário inicia esta dedicatória especial com “Para a tão falada biblioteca José e Guita Mindlin”, e segue com bom humor, “atendendo a repetidas reclamações das bibliotecárias, encabeçadas por Cristina Antunes, oferece este exemplar de seu livro o autor”. Colecionador nato desde os tempos de menino, Mindlin reuniu em sua coleção dedicatórias diversas. Mas as que recebeu para sua própria biblioteca são as tratadas com maior carinho e reunidas no livro de Lucia. Autores como Carlos Drummond, João Cabral de Melo Neto, Raquel de Queiroz, Manuel Bandeira, Saramago e muitos outros fizeram suas homenagens à Mindlin e sua esposa, Guita. Toda sua coleção está acolhida hoje pela USP, boa parte digitalizada, e será transferida para prédio próprio no início de 2013. “Eu queria que fosse uma surpresa. Por outro lado, meu avô mais do que ninguém, seria a pessoa indicada para me dizer o que e onde procurar. Passamos algumas boas tardes olhando e procurando dedicatórias. Infelizmente não consegui finalizar a tempo de mostrar a ele, mas assim mesmo decidi finalizar o projeto”, diz.

As dedicatórias tem espaço especial também na coleção de Aldo Bocchini, fundador de uma grande livraria em São Paulo e hoje dono de um sebo virtual. “Hoje, como sebeiro, ao manusear os volumes de uma biblioteca adquirida, sou o voyeur que o ex-dono dos livros nem suspeita existir”. Aldo sabe que a nossa relação com os livros são especiais e que os tratamos de maneira diferente de qualquer outro objeto que possuímos. Ele não gosta, por exemplo, de dedicar ou escrever seu nome. Tampouco carimba, colamos etiqueta ou ex-libris. Mas tende a usá-los como caixinhas, guardando coisas preciosas.

“Por causa do conteúdo, não do objeto em si, confiamos nos livros e guardamos neles cédulas de dinheiro, receitas médicas e de bolo, passagens, fotografias, cartões de visita, cupons fiscais, cabelos de pessoa amada, bilhetes de loteria jamais conferidos, recortes de jornais, papéis com lembretes para nós mesmos - que vamos esquecer para sempre. Também por isso escrevemos dedicatórias simpáticas, amorosas, que às vezes têm mais a ver conosco do que com a pessoa presenteada”. Aldo acha que, por isso, talvez existam tantos livros com dedicatórias em sebos. Frases como “li e pensei em você” ou "mudou minha maneira de ver o mundo, achei que você também ia gostar" são bastante comuns nestes casos. “Nestas ocasiões, o livro vai para o sebo da esquina na primeira oportunidade”, diz.

A escritora Veronica Stigger é daquelas que gosta de procurar dedicatórias em sebos. Autora de O Trágico e outras comédias e Os anões, Veronica acredita que a dedicatória torna qualquer exemplar mais especial. “Ela acrescenta outro sentido ao livro. É como se criasse uma narrativa paralela, que faz menção a algo de exterior ao livro, a uma relação que se dá - ou se deu, mesmo que muito rapidamente - fora do âmbito do livro”. Nos sebos, ela imagina os caminhos que o livro teria percorrido para chegar em suas mãos. Mas em casa, é o marido - o crítico, poeta e ensaísta Eduardo Sterzi - que lhe presenteia com as mais especiais. “A que mais amo foi escrita no livro Formless, da Rosalind Krauss e do Yve-Alain Bois. Ele me deu de aniversário em 2004 e acabou incluída, como poema, em seu livro Aleijão, lançado em 2009”, diz. O poema, intitulado Nascença, diz: “Assim / como a forma / (digamos, do poema) / é produto / de desgaste – resto, / portanto; escória / cumulada / na órbita / fraca do gozo / originário −, // assim / teu corpo, exausto / e raro (sangue / do sangue / do poema), nasce / de novo / a cada aniversário // Com amor / Eduardo”.

Dedicatórias mais pessoais como estas, daquelas que são pensadas e inspiradas nas pessoas que a recebem, são o mote do blog Eu te dedico, criado pela designer mineira Mariana Gogu. “Eu sempre gostei muito de dedicatórias, de receber e dar. Fiquei pensando como deveria haver várias por aí perdidas, escondidas na estante, sem serem compartilhadas”, diz. No ar desde fevereiro deste ano, a página é alimentada colaborativamente, com histórias de anônimos que enviam suas dedicatórias preferidas. Geralmente, elas são recheadas de histórias, casos de amor, aniversários, viagens. Além de postar as dedicatórias, Mariana pede que cada pessoa explique o contexto em que aquela dedicatória foi criada. “Quando se lê o contexto, toda história muda”, diz.

Mariana costuma dizer que um livro com dedicatória conta duas histórias, uma que começa no primeiro capítulo e outra que começou antes, entre duas pessoas. Uma destas histórias é a sua e de seu irmão Douglas, revelada no blog depois de muito Mariana insistir pela autorização. Nas primeiras páginas do livro Contos de maginário Mistério, de Edgar Allan Poe, Douglas conta a irmã que pouco escreve dedicatórias por medo de terminarem no site. Mas, por fim, revela o motivo desta espacial: tinha acabado de saber que seria pai. Ela lembra também da primeira dedicatória que recebeu, escrita por sua madrinha na capa do infantil Nossos melhores amigos. Ela dizia: “Para a Mariana aprender a gostar de ler, com amor, Didinha Lelé”. A madrinha já deve saber que, pelo jeito, apelo funcionou. 

correnteza abaixo



*originalmente publicada na revista Go Outside / Agosto 2012 

O sueco Christian Bodegren passou 280 dias atravessando os rios da América do Sul em um caiaque emprestado



Não foi por acaso que o sueco Christian Bodegren, de 38 anos, se tornou um aventureiro. Nascido e criado em uma vila ao sul da Suécia, com apenas 300 habitantes, cresceu encantado com a ideia de poder conhecer o que lhe era mostrado nos livros de geografia da escola. Quando se deu conta, estava viajando o mundo sozinho. Sua primeira viagem foi ao Egito e à Israel, no começo da década de 1990. “Estar ali era como pisar em um outro mundo, completamente diferente da aldeia verde de onde eu vinha. O mundo abriu as portas para mim e depois disso senti uma interminável necessidade de viver novas experiências”. Depois passear pela savana africana, subir as montanhas Grand Paradiso, na Itália, e atravessar o deserto do Sahara montado em dromedários, em junho deste ano ele completou outro grande feito. Por nove meses, navegou sozinho em um caiaque pelos rios da América do Sul, partindo da Venezuela até chegar a Argentina.

Li alguns livros sobre a história dos primeiros homens que atravessaram o continente pelos rios e fiquei fascinado pela região. O sonho levou a uma ideia que, por fim, tornou-se realidade”, diz. A preparação para a viagem durou alguns meses. Depois de estudar a fundo mapas, costumes, correntezas e coletar informações sobre como as populações ribeirinhas se transportam, Bodegren escolheu o caiaque como forma de transporte. Experiente remador, ele costumava competir na modalidade quando jovem. Em setembro de 2011, chegou ao ponto de partida de sua jornada, Caracas, na Venezuela.

Ao chegar lá, porém, teve seus equipamentos perdidos no aeroporto, o que o fez ter de repensar toda a expedição. Com a ajuda do amigo Aramis Mateo, proprietário de uma empresa de turismo com caiaque na Venezuela, conseguiu um antigo modelo, que precisou reformar. Assim como os navegadores o fazem, batizou a embarcação emprestada assim que estava pronta. Com o The Green Arrow [a seta verde] partiu pelo rio Orinoco em direção a parte baixa do continente. Seus dias passavam entre remadas, cochilos na rede, muitas picadas de mosquitos e encontros que o marcaram, com animais selvagens ou pessoas que o ajudaram pelo caminho. Vez ou outra, percebia uma movimentação estranha, que deduziu fazer parte do tráfego de drogas que rondeia a região das fronteiras.

Talvez eu tenha tido sorte, mas todas as histórias que me contaram sobre saqueadores pelos rios da Venezuela e Colômbia me parecem como Eldorado, um mito”, disse em novembro do ano passado em seu diário on line, atualizado graças a um sistema de satélite ligado ao seu netbook com bateria solar. O sistema também permitia a parentes e amigos acompanhar a viagem pela internet. Com GPS integrado ao caiaque, a rota do remador era atualizada em tempo real. “Eu imagino o que Antonio Raposo Tavares diria dessa tecnologia”, diz no mesmo diário, citando o explorador português que percorreu mais de 10 mil quilômetros pelos rios brasileiros entre 1648 e 1651.

De fronteira em fronteira, Bodegren passou pelos rios Madeira, Negro, Amazonas, Paraná. Neste último, encontrou um grupo com cerca de 150 remadores, participantes de um encontro anual de caiaques. Bodegren os acompanhou em diferentes rotas por dois dias, até dar continuidade ao seu trajeto rumo a Buenos Aires, pelo Rio De La Plata. Remar contra corrente durante a temporada de chuva foi sua maior dificuldade. Apesar disso, depois de 280 dias, chegou a uma praia na província de Tigre, a cerca de 1 hora da capital argentina, celebrando com espumante e a bandeira da Suécia.

As referências a outras viagens e expedições são temas frequentes no diário do sueco e demonstram o tempo que remador gastou pesquisando histórias e curiosidades sobre a região. De maneira quase didática, ele escreve sobre a vida selvagem, os animais que encontra pelo caminho e até arrisca dar receitas de pratos que inventa, como o sushi de piranha (que na verdade está mais para ceviche). Entre um desabafo e outro sobre os caminhos que percorre, o aventureiro conta pequenas histórias de outros exploradores e de pessoas que encontrou pelo caminho – entre elas, um casal de brasileiros que o hospedou durante o Natal, moradores de uma comunidade ribeirinha próxima ao Rio Madeira. “Conhecer pessoas e lidar com as diferenças são as coisas mais interessantes de toda viagem”, diz, frisando que não encontra problema em viajar sozinho, “exceto pela vontade de dividir a aventura com alguém”.

Quando estava viajando pelo Sahara, atravessando o deserto de leste à oeste entre 2009 e 2010, o sueco aprendeu que para se fazer uma expedição é necessário também se preocupar com algumas burocracias e costumes locais. Viajando com quatro dromedários, ele teve que vendê-los em uma parte do caminho, pois não conseguiria atravessar com eles a fronteira entre a Líbia e a Algeria. O que ele não sabia é que a venda dos animais é proibida em toda região, o que fez ser condenado pela Tunísia a ficar cinco anos sem retornar. “Eu provavelmente sou o único sueco a ter cometido um crime como esse em toda história. Prometi a mim mesmo que não iria vender nenhum dromedário na Venezuela”, brinca.

Mal retornou ao seu país, Bodegren já pensa em planejar sua próxima viagem, apesar de não saber qual seria seu destino. Sua condição é que seja em um local completamente diferente de qualquer um que já tenha ido, com condições climáticas e culturais diversas. “Tudo depende do trabalho, do dinheiro e da democracia”, diz. Atualmente morando na Noruega, ele trabalha como colocador de andaimes em plataformas de petróleo em alto mar. O que também é uma aventura, já que, para estar apto a trabalhar, teve que passar por uma série de testes e treinamentos específicos, incluindo evacuação de helicóptero embaixo d'agua. “Me pergunto quantas toneladas de andaimes tive que organizar para poder pagar minhas aventuras. Não tenho ideia e também prefiro nem pensar nisso”.

Quando está de folga, volta a Suécia e junta dinheiro trabalhando em casa como carpinteiro. Sua vida se resume, basicamente, a trabalhar para viajar. “Quando volto pra casa, fico sonhando com novas aventuras, em ter uma vida onde eu sempre esteja em algum lugar. Provavelmente, sempre será assim, já é parte de mim”, diz. Para o remador, a sensação de voltar a casa é confortante, mas é misturada a certa tristeza. Bodegren diz nascer um sentimento muito especial naqueles que se dedicam a passar tanto tempo na natureza. “É uma sensação poderosa de liberdade. Onde a mente se liberta de toda confusão e tudo parece muito mais óbvio e claro”.



pare, olhe, escute*


*originalmente publicada na Revista Mais nº17 

 No outono do ano 2000, na cidade de Santos, Paulo Eduardo Aagaard, o Pauê, caminhava rumo a academia de ginástica. O trajeto era repetido todos os dias, geralmente na parte da noite, depois que o jovem saía do cursinho. Ir a academia, assim como surfar, fazia parte de sua rotina. O trajeto era cortado por uma linha de trem, desativada há anos. Por uma dessas razões inexplicáveis da vida, naquele dia, passava por aqueles trilhos uma locomotiva. Sem perceber, Pauê atravessou a linha e acordou no hospital, com os paramédicos avisando que ele havia perdido parte das duas pernas.

Pauê tinha 18 anos e teve que reaprender a viver após o acidente que quase o matou. Mas, de certa forma, a fatalidade foi também responsável por transformar o garoto em homem. “Ele teve que amadurecer na marra”, conta sua mãe, Maria Cristina. Hoje, aos 30, o esportista, fisioterapeuta e palestrante conta sua história de maneira bem humorada e busca levar motivação e incentivo àqueles que, como ele, precisam diariamente superar desafios.

Aconteceu tudo muito rápido. Maria Cristina estava num curso noturno, quando recebeu a notícia do acidente do filho primogênito. “Parecia que estava num pesadelo, aquele tipo de coisa que nunca achamos que vai acontecer com a gente. Cheguei no hospital, encontrei a família chorando e aí vi que o negócio era grave”. Ela estava ao lado do filho, do ex marido Paulo e do caçula Bruno, quando os médicos lhe contaram que Pauê havia perdido parte das pernas.

A equipe lhe disse que dali a um mês ele voltaria a andar. Dias na UTI, muita dor, diversas cirurgias e três meses depois, não só Pauê estava em pé, como já estava de volta ao mar, surfando. Ainda se acostumando com um novo corpo, conta ter tomado uma decisão, dessas que mudam pra sempre a maneira de enxergarmos a vida. “O que temos de mais precioso é o livre arbítrio e as escolhas que fazemos são a maior razão da nossa vida. Na hora eu pensei: daqui pra frente minha vida vai ser assim. Cabe a mim decidir o melhor caminho e eu decidi ser feliz”.

A decisão de voltar a surfar foi o ponta pé inicial para uma nova vida. É no mar que Pauê encontra, até hoje, harmonia. Naquele momento, não seria diferente. “Já é difícil se equilibrar na prancha com as duas pernas, imagina com prótese”, diz. Depois de alguns meses de treinamento, ele conseguiu achar a melhor técnica para cair na água: sem próteses, de joelhos, com o leash (aquela cordinha que segura a prancha ao tornozelo do atleta) adaptado a cintura. Pauê se tornou assim o primeiro surfista biamputado do mundo e não há ninguém que surfe como ele assim. A readaptação aconteceu até nas vestimentas. A marca brasileira de surfwear Mormaii fez para Pauê uma série de roupas de borracha apropriadas a sua nova condição. Foi desta retomada ao esporte que ele pegou gosto por testar seus limites. Reaprendeu a nadar – “no começo não conseguia boiar, depois peguei o jeito” -, a andar de bicicleta – “outro dia ainda levei um tombo” - e a correr, com a ajuda de próteses de fibra de carbono especiais para o esporte e feitas sob medida.

As conquistas começaram quando, ao unir os três esportes, Pauê passou a se dedicar de corpo e alma ao triatlo. Treinava todos os dias, sempre alternando as modalidades, seguindo planilhas com acompanhamento de médicos e nutricionistas. Dois anos após o acidente, o primeiro surfista biamputado do mundo era também o para-atleta campeão brasileiro e mundial de triatlo. “O triatlo me estimulava a enfrentar minhas próprias limitaçõs, minha briga era comigo mesmo sempre”. Pauê se manteve campeão do Troféu Brasil de Triatlo por cinco anos, entre 2002 e 2006. Também foi bronze nos Jogos Pan Americanos realizados na República Dominicana, em 2003. Depois de vencer pela quarta vez o Campeonato Internacional de Triatlo, realizado pela CAF - Challanged Athletes Foundation, na Califórnia, o atleta se encantou com um novo esporte e desde 2008 se dedica a canoagem oceânica. “Com o tempo percebi que não bastava mais competir comigo mesmo. Optei por fazer do esporte uma ferramenta de comunicação, para passar a outras pessoas uma mensagem de superação”.

Introdutor do esporte no Brasil, sete vezes campeão brasileiro de canoagem olímpica, Fabio Paiva foi o responsável por levar Pauê ao mundo da canoagem oceânica. Depois de um contato inicial com o esporte, em provas de velocidade, Pauê percebeu na modalidade oceânica a sensação de ir além do recorde. “Hoje, meu objetivo não é quebrar recordes de tempo, mas fazer grandes desafios de resistência ”, diz. Para Pauê, nada se compara a sensação de estar sozinho na água. “Não me encontro em nenhum lugar mais que na água. Quando estou lá no fundo é de verdade. E se, por algum motivo, estou abatido ou mal humorado, preciso mergulhar”.

Com Fabio, pretende realizar um dos grandes feitos de sua carreira no final deste ano, o projeto Superágua. A ideia é sair do Rio de Janeiro de caiaque e percorrer 400 quilômetros até chegar a Santos. A travessia durará dez dias, será inteira documentada e a experiência servirá de material para futuras palestras em encontros com estudantes. “As expedições contam com leis de incentivo e o objetivo é sempre trazer um feedback educativo, focado no incentivo ao esporte e na bandeira da superação”. Para o ano que vem, planeja o projeto Super Bike, que levará Pauê e um outro convidado a dar a volta na ilha de Florianópolis de bicicleta.

Pauê conta seus feitos e planos com tranquilidade, gesticula bastante. Gosta de falar e é vaidoso. Mas o que mais chama atenção no convívio com ele – dizem - é o bom humor. Diego Nunes, seu sócio e amigo, conta que são raras as vezes em que o atleta está de cara fechada. Os dois se conheceram há pouco tempo, cerca de 1 ano e meio, e juntos mantêm a empresa NP2, responsável pela administração da carreira do atleta, assim como os projetos da Pauê TV. Semanalmente, vídeos motivacionais são captados e lançados no seu site oficial (WWW.paue.com.br). “Conviver com o Pauê é diferente porque é uma motivação diária. Não é todo dia que a gente acorda motivado, mas ele acaba sendo em exemplo. E não é muito o perfil dele querer dar exemplo, mas acontece de maneira natural”, diz.

A pedra no caminho pode ser um diamante / Pode ser que ela me atrase / Pode ser que eu me adiante. Os versos são de Gabriel O Pensador, na música Cavaleiro Andante, de 2005. O rapper carioca dedicou essa música a Pauê, depois de conhecer a sua história por um programa de tevê. Gabriel entrou em contato com a produção da emissora e enviou um email ao atleta, estreitando ligações. Inspirado pela história do garoto, passou, meio informalmente, a divulgar os feitos de Pauê. “Uma vez fui fazer um show no Guarujá e lembrei de convidá-lo. Fiz um improviso sobre ele numa música que fala de surf, ele ficou todo orgulhoso. Ele consegue transformar em palavras uma experiência muito forte que teve. Tem habilidade e inteligência para traduzir isso pra quem tá de fora e conseguir inspirar pessoas”, diz Gabriel, que é um dos personagens do documentário O passo de um vencedor. Dirigido po Fabio Cappellini, o filme será lançado no fim do ano, com incentivo da Lei Rouanet, e é baseado no livro Caminhando com as próprias pernas, que Pauê escreveu em 2008.

Hoje, o esportista está vivendo uma de suas grandes fases. Prestes a se casar – ele namora a arquiteta Verena há oito anos -, realizar um grande desafio de canoa e lançar o filme, ele sonha em poder montar no Brasil uma entidade a exemplo a CAF, que auxilie atletas deficientes e organize grandes eventos, afim de aumentar o bem estar, auto estima e qualidade de vida. Ao atravessar aquela linha de trem desativada, Pauê transformou sua vida e de seus familiares. Ao escolher o caminho da felicidade, conseguiu ir além. “Em vários momentos eu me perguntei porque isso aconteceu comigo. Mas raiva mesmo, nunca senti. Acho que tive melhor interpretação de todas, consegui enxergar com toda força que o acidente era uma nova chance. Assim anulei qualquer mal criação futura com a vida”.



quarta-feira, 4 de julho de 2012

para todos*


* originalmente publicada na Revista Mais #15 (junho/2012)

POR CAMILA ALAM 

Não é de hoje que os movimentos artísticos flertam com questões sociais e políticas. A partir do modernismo e com força ainda maior desde a década de 1960, a arte passou a se pautar por questões críticas que moviam a sociedade, promovendo o debate e o ativismo muito intrínsecos a questões estéticas. No mundo em que vivemos hoje, onde há cada vez mais espaço para o individualismo, o papel do artista talvez tenha se tornado o de articulador social, aquele que não só trabalha com a linguagem em si, mas usufrui dela para também discutir o mundo em que vive, se possível, transformá-lo. “O artista que não tem uma vocação social hoje está alienado como pessoa, antiquado”, diz Baixo Ribeiro, sócio fundador da galeria Choque Cultural, de São Paulo.

Para o professor Miguel Chaia, da PUC-SP, a arte hoje envereda por lugares antes não permitidos, fato que influencia diretamente a produção criativa. “O atual confronto com a modernidade, a quebra de fronteiras entre suportes, linguagens e áreas de conhecimento, além da aproximação entre camadas de cultura, permitem que a arte atual engendre por lócus de novas experimentações estéticas, acopladas à tensões sociais existentes em torno do artista”, diz, em seu texto A Arte entre a Autonomia e a Instrumentação, de 2007. Neste sentido, não há como pensar em um artista contemporâneo que não associe sua obra a uma questão social ou política. Ou ainda, que não pense o mundo em que vive para tentar fazer dele um lugar melhor. Monica Nador, 57 anos, Elisa Bracher, 47 anos, Daniel Melim, 33, e Thiago Mundano, 26, são exemplos de artistas de diferentes gerações, bem sucedidos dentro do mercado contemporâneo, que, cada um a sua maneira, viram no engajamento social uma maneira de utilizar a arte como meio transformador da sociedade.

Formada em Artes Plásticas pelas Fundação Armando Alvares Penteado, Elisa se apaixonou pela gravura no último ano da faculdade, período em que estudou com Evandro Carlos Jardim, mestre na arte de ensinar e criar. “Nesta época, queria que as linhas dos meus desenhos se sustentassem sozinhas, então comecei a fazer esculturas”, lembra. E foi muito por causa de suas esculturas que nasceu, há 11 anos, o que hoje é chamado de Instituto Acaia, localizado na zona oeste de São Paulo.

Próximo ao Ceagesp, maior entreposto alimentício da América Latina, um galpão servia de ateliê para a artista. Ao redor, duas favelas, a do Nove e a da Linha. “Como faço estruturas grandes, tive que encontrar um lugar pra trabalhar onde eu pudesse entrar com caminhão. Naquela época ninguém conhecia muito a região”, diz. Devido a criação de grandes esculturas, Elisa montou uma estrutura quase industrial no galpão, onde precisaria de mão de obra para ajudá-la com suas grandes criações em madeira. “Quando vi a molecada na rua, convidei-os para uma aula de marcenaria por semana”.

Com o passar do tempo, Elisa sentiu necessidade de ampliar o projeto, oferendo lanche ou outras atividades que pudessem receber também as mães dessas crianças, como oficinas de costura. Assim, meio por acaso, a artista começou a montar o que hoje é um complexo que atende cerca de 400 pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos, e possui dois braços interligados, um voltado ao ensino pré-vestibular e outro localizado no Pantanal (MS) . O Instituto Acaia (que significa útero, em tupi), ainda se localiza no mesmo galpão e oferece não só oficinas de marcenaria, mas também de bordado, dança, xilogravura, música, culinária e vídeo. Além de biblioteca, atendimento psicológico e jurídico, aulas de capoeira e bijuteria.

“O que temos aqui não são cursos de arte. Estamos usando o instrumental de arte e o potencial de reflexão e abstração que a arte nos dá para ajudar esses meninos a se estruturarem internamente”, diz Elisa. Para que este contato fosse produtivo, a artista viu a necessidade de manter relações com as duas comunidades mais próximas da maneira mais clara e direta possível. “Uma coisa determinante para aumentar o número de alunos foi esperar um tempo grande para que a comunidade passasse a confiar na gente. Esse foi o grande passo que demos e a coisa que mais preservamos hoje em dia”. Para isso, foram criados dois “barracos-escola” em cada uma das favelas atendidas pelo Instituto. O mais antigo é o da favela do Nove, criado em 2005, e o mais recente fica dentro da Favela da Linha, instalado desde 2009. Nesses galpões inseridos nas comunidades, são realizadas algumas oficinas no local e o trabalho do Instituto pode ser divulgado ainda mais internamente. É uma maneira de quebrar o gelo, já que ainda é vista certa resistência por parte da população em frequentar as oficinas.

Com o trabalho do Instituto já bem encaminhado, Elisa passou a se dedicar também ao cinema. Um de seus projetos inclui viajar para o Nordeste e visitar a família de alguns dos alunos que frequentam o Instituto, com quem mantém relação de cumplicidade. Com algumas horas já filmadas, a artista pretende lançar um documentário com o material. “Aqui é muito diferente da realidade que eu fui criada, mas o meu meio é esse aqui, é o que eu gosto.”

Foi também longe do seu ambiente natural que outra artista percebeu a força de sua arte. Natural de São José dos Campos, interior de São Paulo, Mônica Nador também se formou em Artes Plásticas pela FAAP, depois de uma passagem pela arquitetura. “Na faculdade, entrei nesse universo da arte que é de individuação profunda, descobri que estava mergulhada em um meio muito conservador e comecei a questioná-lo”, diz. A partir do mestrado, pela Universidade de São Paulo, a artista percebeu que poderia levar a arte a uma esfera menos individual e mais social e coletiva. Começou então, de maneira quase experimental, a pintar muros da cidade, gerando, segundo sua definição, uma “arte útil”.

Com o projeto Paredes Pinturas passou por São Paulo, Bahia, Amazônia, Cuba, México, para finalmente voltar à capital paulista. Desde 2004, Mônica mudou-se para um dos bairros mais violentos da cidade, o Jardim Miriam, na periferia sul de São Paulo. Lá iniciou o Jardim Miriam Arte Clube, também conhecido como JAMAC, projeto que apresenta aos jovens do bairro maneiras e alternativas de trabalhar com arte.

Por meio principalmente de oficinas de stencil, a artista ensina aos jovens como ampliar seus horizontes culturais, que mais tarde são compartilhados com toda comunidade. Na oficina, eles aprendem a fabricar e aplicar a técnica do stencil, para depois utilizá-la em muros ou tecidos. Muitas das casas, escolas e comércios do bairro tem suas fachadas pintadas pela artista e seus “ajudantes”. As oficinas também geraram os frutos de sua última exposição, intitulada Autoria Compartilhada, realizada em novembro passado pela galera Luciana Britto, a mesma que representa a artista. Na exposição, a artista apresentou padronagens criadas por ela e pelos jovens do JAMAC.

O clube, hoje denominado Ponto de Cultura pelo Governo Federal, também apresenta mensalmente o Café Filosófico e o Cine Jamac, que reúne a comunidade para discutir diferentes temas em torno da cultura, seja por meio do debate ou do audiovisual. Para o professor Miguel Chaia, este projeto “levanta questões que remetem ao significado da origem da arte, quando não havia ainda separação entre arte e sociedade, arte e religião, produtor e obra”. Fã de pensadores brasileiros como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, a artista busca que a comunidade possa, por meio da arte, se autorrepresentar. Para isso, aposta num projeto que una stencil e comércio. Dentro das oficinas, criam estampas em tecido que depois servem para encapar cadernos, fichários ou pastas. “O meu maior desejo é ver o projeto acontecer de verdade, que possa realmente gerar empregos e se sustentar sozinho. Aos poucos está rolando”, diz.

O aumento da autoestima da comunidade é, aliás, uma das principais mudanças notadas por esses artistas. Thiago Mundano também é desses que acreditam no poder transformador da arte e percebe isso claramente no trabalho em que vem realizando pelos últimos anos. Anônimo até pouco tempo e bastante reservado, o grafiteiro já espalhou pelos muros da cidade diversas frases que se referem à questões ligadas a vida dos moradores de São Paulo. Trânsito, meio ambiente e desigualdades sociais e políticas são temas frequentes de suas obras. Por suas andanças pela cidade, passou a conviver diariamente com moradores de rua e catadores de material reciclável. Um dia, ao cruzar com um desses catadores que puxam carroça, resolveu pintá-la com desenhos e frases sobre reciclagem. Desde então, já se passaram cinco anos e Mundano pintou o veículo de 160 catadores, originando o projeto Pimp my Carroça.

Inspirado nos programas de televisão que “pimpam”, ou seja, fazem uma bela reforma, em automóveis, o artista lançou o projeto em março deste ano por meio de colaboração coletiva na internet. Assim, todos que apoiam a ideia, podem contribuir com a verba que quiserem. O projeto Pimp my Carroça não só pinta as carroças, como também as transforma em veículos mais seguros para transitar pela cidade, com marcas de sinalização, espelhos e freios. Além disso, o catador de material ainda passa por avaliação médica de um clínico geral, um oftalmologista e um especialista em dependência química, além de ganhar alimentação e uma camiseta do projeto. “Acredito que esta seja uma maneira de chamar atenção para o trabalho dos catadores, que são hoje responsáveis por recolher 90% do lixo reciclável da cidade de São Paulo. Muitos estão a margem da sociedade, mas eles são agentes importantes para a sustentabilidade”, diz Mundano, notando que, hoje, apenas 1% das 17 mil toneladas de lixo da cidade é reciclado. “É um dado vergonhoso”.

Mundano começou a se dar conta destes e outros dados há cerca de cinco anos, quando deu inicio as atividades com os catadores. De lá pra cá, tornou-se quase especialista no assunto, do qual fala com naturalidade e propriedade. Por isso, foi convidado a participar do ciclo de conferências TEDx, que acontece em diferentes partes do mundo e discute ideias relacionadas à tecnologia, design e entretenimento. “Agora, todo lugar que eu vou, começo a reparar no lixo. Em Salvador, por exemplo, estão a anos luz à frente de São Paulo”, diz, referindo-se ao lixão de Canabrava, que hoje é fonte de renda de centenas de famílias soteropolitanas graças à parcerias bem sucedidas entre ONGs e o governo do estado. “Esta é uma luta que tomei pra mim, mas na verdade é de todos nós. Ainda existem muitas peças desencaixadas, porque precisamos ainda mudar o pensamento da sociedade, aprender a desperdiçar menos. Mas acredito, com certeza, que é função da arte promover a mudança, ela pode ser realmente um mecanismo para o beneficio social, porque gera a reflexão”, diz.

É também por meio da arte e da reflexão que outro grafiteiro, Daniel Melim, começou a desenvolver o que hoje chama de Projeto Jardim Limpão, criado por ele em 2006. Representado pela galeria Choque Cultural, de São Paulo, Melim é hoje um dos mais prestigiados artistas da chamada street art nacional, hoje em alta entre colecionadores e amantes de arte contemporânea. Criado no Jardim Leblon, em São Bernado do Campo, vizinho ao Limpão, Melim sempre frequentou o bairro, o que lhe deu liberdade para, já adulto, iniciar espontaneamente o projeto. O que começou com algumas reuniões esporádicas para ensinar crianças a técnica do grafite, ainda em 2006, hoje se apoia em aulas semanais sobre linguagens visuais, ministradas pelo artista na sede da comunidade para cerca de 20 jovens, entre 7 e 15 anos. As aulas aliam o aprendizado dentro do ateliê com a pratica nas ruas e vielas do bairro.

“No começo era muito aleatório, as oficinas aconteciam quando dava. Mas com as aulas, semanais o projeto ganhou mais força. Hoje estamos mais bem organizados e a molecadinha está mais consciente”, diz Melim. “Também crescemos ao ter maior abertura com os pais. Hoje eles vem nos procurar pra falar, por exemplo, que o filho não está indo bem na escola”. Em 2010, o projeto Jardim Limpão foi selecionado pelo programa para a valorização de iniciativas culturais do município de São Bernardo do Campo, o VAI-ABC. Por meio do VAI e por investimento próprio, o artista mantém o projeto, que às vezes também recebe doações de amigos. Alguns dos trabalhos da turma de alunos de Melim já foram expostos no exterior, com a ajuda da ABC Trust, ONG americana focada em ajudar crianças brasileiras em condições vulneráveis.

Filho de pai metalúrgico e mãe professora, Melim é formado em Educação Artística, pela FATEA de São Bernardo, e começou a carreira como arte educador. Sonha, por exemplo, com o dia que um de seus atuais alunos possa dar continuidade ao projeto. “Tento passar pra eles o máximo de conteúdo, para que eles se tornem multiplicadores”, diz. Para Melim, o projeto o leva a questionamentos pessoais e influencia diretamente na sua produção artística. “Com o convívio, acabo vendo várias situações do bairro, como a maneira como violência ou o trabalho afeta a vida deles. Quando chego em casa para pintar, acabo trazendo um pouco disso tudo. Sou muito grato pelo projeto por me questionar sempre e não me manter estático”.

Baixo Ribeiro complementa esta fala de Melim ao dizer que o questionamento é a maior função do artista no mundo de hoje. “A função do artista é trabalhar com a linguagem, mas não somente. O que se tem que fazer agora é aproveitar os novos meios, falar com pessoas e públicos que não são ouvidos, focar a visão na inclusão”, completa. “A arte envolve qualquer pessoa, independente da língua que ela fale ou da classe social. Historicamente, tratamos a arte como coisa de elite, por isso houve um processo de afastamento da pessoas da arte. Isso foi uma escolha de mercado para gerar maior valorização”. Para o curador, estamos hoje invertendo este processo, trazendo cada vez mais a arte para esferas antes não atingidas. “Para artista não interessa quem está vendo, se é o morador de rua ou um rico colecionador. O prazer, no final, está em que qualquer pessoa curta”.

domingo, 1 de julho de 2012

miranda taxi foto*


*originalmente publicada na CartaCapital, em 2010. 

POR CAMILA ALAM 

Foi no bairro paulistano da Vila Madalena que Antonio Miranda nasceu, viveu e se dedicou ao trabalho de taxista, ofício que sustenta sua mulher e seus dois filhos.  Graças ao bairro, também, deu chance a um desejo antigo, o de tornar-se fotógrafo. Hoje, aos 49 anos, firma ponto na esquina das ruas Wisard e Fradique Coutinho, esta ultima testemunha de sua infância no bairro, numa época em que estava longe de ser uma das predileções da boemia paulistana.

Recheado de artistas e estúdios fotográficos, o bairro trouxe ao banco de trás de Miranda alguns experientes profissionais que o ajudaram nas primeiras tentativas, por volta de 2006. Curioso e atento a fotografia desde adolescência, Miranda questionava, pedia dicas e era atendido. Ganhava livros e elogios, mas com as críticas aprimorou o olhar. Fez do seu sustento, sua escola, seu estúdio e sua divulgação. 

É um fotografo a moda antiga. Seu equipamento predileto é uma yashica x, modelo encontrado depois de percorrer feiras de antiguidade como as da praça Benedito Calixto e a do bairro do bexiga.  “Tava lá jogada”. Protegida em uma bolsa térmica, a pequena máquina e seus rolos de filme acompanham o taxista pela cidade, bem escondidas embaixo do banco do motorista. 

Prédios antigos, árvores retorcidas, reflexos da cidade. Os objetos de atração do taxista passam diariamente por sua janela e são devidamente observados. Se, durante uma corrida, passa por ambiente que chama sua atenção, Miranda segue ao destino,  deixa o passageiro e volta para fotografar o que quer que seja. São nas viagens mais longas que cliques descompromissados acontecem fora do taxi. Seu primeiro ensaio, surgiu depois de deixar uma passageira no convento da boa vista. “Me chamava atenção as arvores com troncos exóticos, retorcidos, ensaios de sombra e luz e gramados. Eu ficava lá fotografando, até as freiras me colocarem pra fora”. 

Agora também olha para a cidade, buscando arquitetura antiga, escadas inusitadas. Olha para os cemitérios, onde se inspira na arte tumular. No centro velho, começou o projeto que chama “cidade dentro da Cidade”, onde dedica a série aos prédios antigos e aos moradores de rua que dormem aos seus pés. Iniciado o projeto, ainda não conseguiu terminar. “Me abalou demais. Quem tem olhar e consegue ver esses problemas, sabe que vivemos numa cidade de mentira. O sistema assistencial é mentira, a prefeitura é uma farsa”. 
Em uma das poucas inserções ao retrato, Miranda conheceu o morador de rua Giovani. Sem máquina a mão, registrou o rosto do mendigo com o celular, que possui uma câmera simples de 3 megapixels, cuja ampliação chega até 30x45. “Acho que colocaram a lente errada aqui”. Desde então, sai as ruas registrando tudo no celular, imagens que depois posta no blog (HTTP://mirandataxifoto.blogspot.com) que criou com a ajuda de fotógrafos amigos da vila madalena.  “De computador não entendo nada. Montaram o blog e me ensinaram a atualizar”. Miranda também não usa Photoshop ou qualquer outro programa de tratamento de imagens. “Minha essência é a simplicidade, não tenho recursos para fazer foto”. 
Pelo celular, entrou na era da digitalização. Aprendeu  que pode gastar menos e treinar mais. Com o filme, passou a ser mais seletivo e buscar resultados. Hoje, diferencia as duas maneiras de fotografar. “Existe a foto e a fotografia. A fotografia parece coisa boba, mas ela tem algo mais que uma simples foto.”

reflexões*

* publicada originalmente na +Soma #25


POR CAMILA ALAM

Realizado permanentemente pelo Itaú Cultural, o projeto Ocupação já contemplou personalidades tão plurais quanto o diretor de teatro Zé Celso, o artista plástico Nelson Leirner ou o músico Chico Science. Com o intuito de aproximar o visitante da obra e do processo de criação do artista, o projeto expõe Rio Oir, do carioca Cildo Meireles, até 02 de outubro [de 2011].

Um dos maiores artistas de sua geração e importante nome da arte contemporânea internacional, Cildo costuma convidar o visitante a refletir sobre questões de ordem política. Desta vez não é diferente. Rio Oir é uma obra sonora, um disco de vinil que de um lado registra o som de quatro principais bacias hidrográficas do Brasil e de outro apresenta o som de risadas e gargalhadas. O visitante passeia pela ocupação, ouve os dois lados do disco e entende o processo de criação da obra por meio das fotografias de Edouard Fraipont, registros da viagem feita pelo o artista e sua equipe (iniciada em 2009) às bacias nacionais – elas estão no Distrito Federal, Amapá, Paraná e na fronteira entre os estados Alagoas e Sergipe. 

Pensado originalmente em 1976, o LP tomou forma somente agora e seu processo de criação fez o artista mergulhar na questão das águas. “Encontramos nascentes natimortas, o que foi muito impactante. O caso do Rio São Francisco talvez seja o mais emblemático, um rio que se tornou muito doente nas últimas décadas”, diz o artista que também percebeu, ainda que tardiamente, o impacto causado pelas usinas hidrelétricas nestas e em outras regiões. “Durante minha vida, até por ignorância mesmo, defendi as usinas hidrelétricas como fonte de energia. Mas olha o estrago que ela faz ao ser implantada. Boa parte dos rios já estão altamente contaminados por substâncias como o mercúrio”.

É desta forma que o artista faz seu alerta e encaminha esta peça a um questionamento político surgido naturalmente. “Originalmente queria apenas trabalhar a inversão do rio e do riso. Mas se transformou”, diz. Rio Oir é, nas palavras do curador Guilherme Wisnik, um palíndromo, ou seja, uma frase reversível. Desta forma, Cildo constrói uma relação de espelhamento, que remete a própria estrutura do vinil e convida o visitante a oir (“ouvir”, em castelhano) o rio e o riso.  “No fim, é como se os dois lados fossem um só: rio, riso, choro e chuva”, completa o curador. Ao som dos rios, o artista incluiu o barulho de águas residuais, como torneiras, descargas, goteiras, bebedouros. “Muito em breve todas as águas fluviais do Brasil serão, de certa forma, residuárias, pois elas já estão sendo conspurcadas na fonte”, diz o artista.

Este não é o primeiro trabalho sonoro de Cildo Meireles, ao contrário, os sons são intrínsecos a sua produção desde a década de 1970, seja por meio de aparelhos ou pela própria ação do visitante. Mebs/Caraxia (de 1970), Sal Sem Carne (1975) e Babel (2001) são alguns dos projetos essencialmente sonoros do artista, assim como Liverbeatlespool, criada para a Bienal de Liverpool de 2004, onde sobrepõe canções do quarteto inglês as transformando em ruídos.  Na contramão, há sons produzidos pelo próprio visitante, como na instalação Através (1989), em que o público que pisa sobre um chão de vidro estilhaçado, provocando barulhos que tão tom a obra.  

De uma maneira ou de outra, o que Cildo Meireles faz é levar o visitante a uma experiência audiovisual e estética onde geralmente transmite uma mensagem de protesto, ainda que sutilmente. Do seu caderninho de anotações, companheiro fiel de jornada desde os primeiros anos de sua produção, saem estes e outros alertas que fazem o espectador refletir não só sobre a arte, mas sobre o próprio mundo ao seu redor.


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A grande travessia *

*Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Mais #12, em dezembro de 2011.

A grande travessia

Quatro brasileiras enfrentaram o maior desafio para quem nada em águas abertas: atravessar o Canal da Mancha. Frio, escuridão e fortes mudanças climáticas fazem da prova a mais difícil do mundo

Por Camila Alam


Todo nadador que se aventura por águas abertas tem um grande sonho: atravessar o canal da Mancha, a faixa de oceano Atlântico que separa a Inglaterra da França. Com aproximadamente 563 quilômetros de comprimento, no total, e até 240 quilômetros de largura, dependendo do ponto, sua parte mais estreita – onde as travessias a nado costumam ser realizadas – tem 34 quilômetros de extensão em linha reta entre a cidade de Dover, na Inglaterra, e Calais, na França. Ou seja: ida e volta somam quase 80 quilômetros, com profundidade de até 120 metros. Frio extremo, escuro e fortes mudanças climáticas fazem desta a prova mais difícil do mundo.


Nada disso foi suficiente para deter as quatro nadadoras paulistas que se reuniram para cruzar o estreito no mês de junho. Juntas, a personal trainer Marta Izo, 41, a empresária Luciana Akissue, 34, a executiva Giuliana Braga, 39, e a advogada Priscila Santos, 32, chegaram aonde nenhuma outra equipe feminina de revezamento no mundo chegou. Foram 13 meses de preparação e muito treino. Ao finalizarem a ida, bateram o recorde de 8 horas e 22 minutos. Ao término da volta, somaram 18 horas e 42 minutos no total, o tempo mais rápido já realizado por uma equipe feminina.


Atravessar o canal da Mancha virou uma tradição desde que o capitão inglês Matthew Webb realizou o feito pela primeira vez, em 1875. Ele realizou um percurso em 21 horas e 45 minutos, de Dover a Calais. Em 1927, a Channel Swimming Association foi fundada para orientar e acompanhar atletas que desejassem realizar a travessia, entidade responsável pela organização e cronometragem até hoje. De lá pra cá, nadadores de todo mundo se inscrevem para realizar a prova, seja individualmente ou em revezamento, e apenas 10% dos inscritos conseguem chegar ao final.


Quatro por quatro


Frequentadoras do circuito de provas nacionais, as quatro são nadadoras de longa data. Uma delas, inclusive, já foi longe: em 2006, a professora de educação física Marta Izo se tornou a quinta brasileira a completar a travessia do canal da Mancha – sozinha. Em 2010, durante uma conversa com a amiga Priscila Santos, hexacampeã da travessia 14 Bis Santos-Bertioga (25 km), ambas tiveram a ideia de fazer revezamento 4x4 em grande estilo, partindo da Inglaterra em direção à França. Convocaram Giu e Luciana, outras atletas do circuito de mar aberto que também já pensavam no desafio. Giuliana está entre as três melhores atletas do Campeonato Paulista de Maratonas Aquáticas, de 2008 a 2010, e Luciana ganhou a Travessia dos Fortes em 2009, no Rio de Janeiro. Com a equipe formada, fizeram o projeto, conseguiram patrocínio e elegeram como treinador o bicampeão da prova Igor de Souza, 48 anos, atual diretor técnico da seleção brasileira de maratonas aquáticas. Ele teria como auxiliar Agnaldo Arsuffi, outro experiente treinador e consagrado o mais rápido no Canal da Mancha entre 1996 e 1997.


Um ano antes da data prevista para a prova as meninas passaram a treinar diariamente. Revezaram-se entre piscina, trabalho, nutricionista e musculação. Nas madrugadas de sexta para sábado, o treino era coletivo e acontecia na represa Billings, em São Paulo, para que elas se acostumassem à escuridão. “À noite a gente não enxerga absolutamente nada e isso mexe muito com o psicológico. É assustador”, conta Martinha.

Foram mais de 1.300 quilômetros nadados no decorrer do treinamento. Uma vez agendado o dia com a Channel Swimming Association, cada equipe tem uma semana para tentar. “No canal você está brincando com a vida o tempo todo e percebe que ele pode te consumir”, afirma Priscila. O termômetro na água marcava em média 14 graus, 3 a menos do que o esperado. “Quando chegamos lá, a gente só comia, treinava e dormia. Tivemos de nos ajudar bastante a controlar a ansiedade”, lembra Luciana.

A largada foi dada em 27 de junho, dia quente e com pouco vento. Giu foi a primeira a cair no mar, seguida por Priscila, Luciana e Martinha, que se revezaram a cada hora. A certa altura, Igor e Agnaldo viram a possibilidade de bater o primeiro recorde mundial na ida. O que até então não era considerado objetivo passou a ser a maior meta do grupo. Luciana, na água, apertou o ritmo. Martinha e depois Giu seguiram forte, até que Igor levantou a placa “800 metros para França, força!”. Ao chegar em solo francês, Giu pisou na areia e ouviu a buzina, confirmando que haviam batido o recorde. As meninas conquistaram a França em 8 horas e 22 minutos. Só faltava o retorno. “A volta parecia fácil após uma ida tranquila. Continuamos a nadar firme”, lembra Giu.

No retorno em direção à Inglaterra, o cronômetro já marcava cerca de 13 horas de prova quando um dos juízes se aproximou do treinador para dar a má noticia: elas haviam se afastado 2 milhas da costa e, caso não conseguissem voltar, seriam desclassificadas. Igor pediu a organização meia hora para consertar o erro e realizou “uma estratégia kamikaze”: as meninas deveriam nadar contra a corrente, sem regredir. A corrente estava prevista para mudar em breve e o rumo seria acertado. A previsão deu certo: algumas milhas depois, elas entraram novamente no eixo. Algum tempo foi perdido, mas os juízes aprovaram a mudança e deixaram que continuassem na prova. “Nessa hora, confiei nas meninas. Sabia a força que elas tinham. Elas também foram muito disciplinadas e acataram minhas decisões”, lembra o treinador.

Faltando cerca de 3 quilômetros para o final, Luciana caiu na água com a tarefa de quebrar mais uma corrente, nadar pesado e conquistar o recorde. “Era enorme a torcida no barco e também pela internet, já que todo percurso estava sendo transmitido ao vivo”, narra Giu. Começava a chover e os pingos de água se misturavam às lágrimas. Ao pisar na areia, Luciana levantou os braços e ouviu a buzina. Pela primeira vez na história, um grupo de quatro mulheres havia conquistado o Canal da Mancha em tempo inédito: 18 horas e 42 minutos. Cheia de orgulho, Giu avalia a dura prova de resistência: “Travessia todos fazem na vida ao ter um filho ou mudar de emprego. Mas as pessoas não costumam reconhecer sua própria força e suas glórias. Só que isso nos deixa mais fortes ainda”, garante.

domingo, 10 de julho de 2011

Audrey Tautou

Em junho, entrevistei a atriz francesa Audrey Tautou para a revista RG. Foi tudo muuuito rápido, tínhamos apenas 10 minutos para conversar. Ela foi simpática, mas parecia um pouco cansada. Abaixo, o texto publicado.


Audrey Tautou fez uma passagem relâmpago pelo Brasil para divulgar seu novo filme Uma Doce Mentira. Na comédia romântica, sua personagem recebe uma carta de amor anônima e, sem dar a menor bola, a entrega para a mãe meio deprê. E começa a confusão. Simpática, a atriz recebeu RG para uma rápida conversa em um hotel em São Paulo e disse não ligar nem um pouco pra moda. Mas a gente bem reparou no casaquinho Chanel que ela usava.

Como está sendo essa primeira passagem pelo Brasil?

Estou super feliz. Ainda não tive tempo de conhecer muito a cidade, sinto muito calor humano e simpatia. Pude visitar o Museu de Arte de São Paulo, achei a coleção extraordinária e a arquitetura muito interessante. Adoro frequentar lugares que ainda não conheço.

Em Uma Doce Mentira sua personagem é bastante confusa, não?

Sim, ela é incrível. Está cheia de boas intenções, mas não pensa nas consequências de seus atos. Ela tem muita confiança em si mesma, mas pode desmontar com facilidade e às vezes até agir com má fé. Eu adoro personagens assim, cheio de nuances.

Você se sente atraída por Hollywood?

Não tenho um desejo de ter uma carreira hollyoodiana. É um sistema muito louco e diferente do que eu busco. Eu não procuro grande exposição e nem quero ser uma huge star. Viajar para divulgar filmes franceses é muito mais prazeroso.

Encarnar Coco Chanel e virar garota propaganda da marca mudou sua relação com a moda?

Na verdade, esta é uma relação pouco estreita. Não tenho muita afinidade com a indústria, como pensam. Admiro alguns designers, mas me preocupo pouco e nem leio revistas especializadas.

sábado, 4 de junho de 2011

entrevista fernanda feitosa

Esta mini entrevista foi publicada originalmente no site da RG em maio, época da SP Arte.


Fernanda Feitosa, diretora e idealizadora da SP-Arte, conversou com RG sobre as novidades da feira, que acontece entre os dias 12 e 15 de maio, no Pavilhão da Bienal, em São Paulo

RG: Depois de sete edições, a SP-Arte está mais madura?

Sim, a cada ano batemos novos recordes e hoje podemos ver o impacto que a feira produz no Brasil. Ano passado, por exemplo, tivemos mais de 16 mil visitantes dos mais diversos tipos. São famílias, estudantes, empresários, gente que trabalha, vive ou aprecia arte. Este número se reflete nas próprias galerias, que veem aumentar o seus visitantes.

RG: Isso se reflete nos números de vendas?
A economia está estável e a maneira como o Brasil superou a crise financeira mundial dá otimismo ao comprador. Ainda é pequena a parcela de visitantes que efetivamente compram na feira – menos de 10% -, mas não é um mercado restrito ou limitado a quem tem dinheiro. Há obras para todos os bolsos. Um dos trabalhos da feira é levar às galerias público que começa a entrar neste mercado.

RG: Há uma seleção para escolher as galerias participantes?

Qualquer galeria pode se inscrever para participar. Este ano muitas ficaram na lista de espera, mas mesmo alguns artistas e galeristas que não participam da feira me escrevem para agradecer o fato dela existir. De certa forma é uma inclusão profissional.

RG: Quais novidades deste ano?

Uma direção que estamos tomando, e também um avanço, é a de apresentar obras em grandes formatos. Elas servem essencialmente a compradores institucionais, que procuram obras impactantes. Como não são de escala doméstica, ocuparão o último andar do pavilhão.

RG: Que dicas dar a quem quer investir?

Nós não costumamos ter o mesmo gosto a vida inteira. Apreciar arte é um exercício constante, um processo criativo. Eu deixei de comprar coisas há 10 anos que hoje me arrependo. Mas o essencial é investir naquela arte que dialoga, toca e transmite sentimento. A regra número um é gostar.