sexta-feira, 7 de agosto de 2009

nos becos do limpão

No bairro do Jardim Limpão, Daniel Melim ensina jovens a grafitar

É em direção a uma estreita viela, na entrada do bairro do Jardim Limpão, em São Bernardo do Campo, que Daniel Melim se dirige, carregando material que traz no porta-malas de seu carro. Num caixote de supermercado estão latas de tinta, sprays coloridos, pincéis e estênceis. São poucos, comparados aos que o artista usa em seu atelier, localizado a metros dali, mas suficiente para fazer a alegria de uma molecada que o avista de longe e chega pulando para cumprimentar. Há quatro anos, Melim desenvolve no bairro que viu crescer o Projeto Comunidade Limpão, que tenta voltar a atenção dos jovens e crianças para a arte, usando como base principal o grafite.

Em uma espécie de workshop improvisado, numa manhã de domingo, o artista reúne algumas crianças e começa a planejar, com elas, a nova fachada da sede da comunidade. O lugar, um pequeno quadrado com banheiro, é também a base do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Senhô, onde ao mesmo tempo, Fabio Almeida, conhecido como Preto, ensina um grupo a montar um xequeré, um dos instrumentos de percussão usados nas rodas de capoeira. Cenas como estas, repetidas em fins de semana no Limpão, se tornaram rotina para a comunidade, assim como para Melim, artista em progressiva ascensão no hoje cobiçado mundo da chamada street art.

Foi no Jardim Leblon, também em São Bernardo, que começou a trajetória como artista. Trabalhou como motorista quando jovem, deu aula de pintura em escolas públicas e hoje, aos 29 anos, já expôs em mostras no Brasil e no exterior e é representado por uma importante galeria em São Paulo, a Choque Cultural, especializada em arte contemporânea. Um de seus últimos trabalhos está hoje em Londres. Convidado pela ONG Action for Brazil’s Children, que tem como patronos figurões do showbussiness, como o guitarrista Jimmy Page e o cineasta Fernando Meirelles, Melim customizou uma cobiçada guitarra da marca Gibson. O objeto, junto com outros 11 feitos por outros artistas, será leiloado em breve.

Se Melim já é um nome conhecido para os modernos e entendidos, ali, para as crianças do Limpão, é o boa gente que vem ensinar como trabalhar com uma técnica antes marginalizada. Começando a pintura de base na parede da sede, Lucas, de 14 anos, Rafael, 12, Rodrigo, 15, e Gabriel, 9, discutem o tema que deverá emergir do velho muro.

“O símbolo do Corinthians!”, alguém grita. “Não fala besteira, menino”, retruca o professor. De maneira muito natural e improvisada, Melim guia os garotos, ensina o processo e os deixa trabalharem sozinhos. Mostra como segurar um rolo de tinta, explica as diferenças entre os diversos tamanhos de bicos do spray e ajuda a montar a idéia geral do projeto. O grupo é pequeno, para evitar bagunça. Ainda assim, o artista precisa chamar atenção dos insistentes, que tentam, em vão, usar os sprays para “pichar” o muro da frente. E coitado de alguém que usar a palavra pichação. “Aqui ninguém picha”, diz Melim, que é imediatamente respeitado. Um dos rebeldes acaba escapando e vai pintar um poste com o que sobrou de tinta vermelha num rolinho. Tudo bem.

Encostadas nas proximidades, outras crianças observam e tentam chegar para ajudar. Hoje não, mas fica pra próxima. O material, todo bancado pelo artista, só é suficiente para pintar a sede, mas a parede ao lado, cedida pelo dono do bar vizinho, já está reservada para a próxima intervenção. Outras crianças trabalharão nesse dia. A pintura das vielas, muros e fachadas de casa só funciona com a autorização dos donos das casas. “Aqui tem muitos evangélicos e eles não gostam das figuras. Normalmente acham que é coisa do diabo”, explica Melim.

Do lado de fora, é possível ouvir o barulho do batuque que vem de dentro da casa. Fabio Almeida, o Preto, está ensinando um grupo a montar um xequeré, instrumento africano que custa em média 100 reais, mas que no workshop do Limpão, o morador aprende a fazer e leva pra casa. Na cozinha improvisada, um fogão de duas bocas esquenta uma panela de pressão cheia de canjica. “Tentamos resgatar a cultura africana, através da música, da capoeira e da culinária. É a nossa essência”, diz Preto, ao mesmo tempo em que mostra a repórter como construir o instrumento. Para o professor de capoeira, pernambucano de 31 anos, que há 8 trabalha e mora no Limpão, a maior dificuldade não é ensinar as crianças, mas seus pais. “É difícil formar a identidade dos pequenos, quando eles saem daqui ouvindo o canto das lavadeiras e voltam para casa para ouvir funk que os pais ouvem”. Preto conta que se teve noção de sua responsabilidade junto as crianças no dia em que um garoto o viu tomando cerveja em um churrasco. “Você é um mentiroso! Ensina a gente não beber, e está aí, com a latinha na mão”, foi a bronca do garoto. Depois disso, parou de beber. E o garoto, hoje com 13 anos, é Caíque, um dos mais experientes e promissores da roda de capoeira.

A sede não é, contudo, freqüentada só por moradores. A professora Roberta Costa, de 29 anos, ouviu de seus vizinhos que ali eram dadas aulas de capoeira e resolveu conhecer. Assídua no local há pouco mais de dois meses, ela traz o filho Flavio, de 4 anos. O garoto é um dos mais empolgados quando ouve o som do berimbau e arrisca alguns passos que vem aprendendo nas aulas. “Ele só fala disso, adora vir aqui. E tenho aprendido coisas de raiz que posso também levar pros meus alunos”, conta a professora da rede pública que ensaia uma dança africana para os alunos colocarem em prática na próxima festa junina.

Do lado de fora, o muro está quase pronto. Enquanto Lucas saca um aparelho de MP3 e ouve funk carioca, do tipo “proibidão”, Rodrigo, o mais velho da turma, termina uma parte do stencil. A técnica muito usada na arte de rua e consiste em usar uma espécie de forma para delimitar traçados. Com o muro pronto, Melim saca a câmera e faz fotos. Todos querem mostrar os dedos sujos de tintas, orgulhosos do trabalho que terminaram, depois de mais ou menos quatro horas de pintura. “Tentamos fugir da idéia de deixar a favela ‘mais bonita’. Queremos sim, humanizar os becos, trazer as crianças para perto de nós e deixá-los cada vez mais longe do tráfico”, diz Melim. Há cerca de quatro anos dando continuidade ao projeto Comunidade Limpão, Melim, Preto e os outros organizadores dessa pequena sede ainda encontram dificuldades para conseguir apoio. Tentam, pelos próprios meios, agir de maneira independente. O desejo antigo de montar uma ONG, que receba doações de maneira legal, julgam ser um processo burocrático demais. Mas que aos poucos começa a tomar forma. Enquanto isso, nos fins de semana do Limpão, faça chuva ou faça sol, a garotada segue aprendendo o que lhes é ensinado. Mesmo que seja misturando o funk com o afoxé.

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