sábado, 25 de setembro de 2010

A bienal do bode político

A última edição da Bienal Internacional de São Paulo, realizada em 2008, deixou má impressão e saldo negativo. Depois de polêmicas que envolviam um andar vazio, pichadores e administradores mal preparados se cogitou cancelar a 29ª edição. Mas ela surge em 2010 renovada, sob curadoria de Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, querendo atingir até 1 milhão de visitantes entre os dias 25 de setembro e 12 de dezembro, em São Paulo.

Muito foi feito, nos últimos dois anos, para limpar a imagem da Fundação Bienal. Empossado em 2009, o presidente Heitor Martins tinha como desafio reestruturar não só a parte administrativa, mas ajudar a conduzir público e crítica à apreciação do tradicional evento. Sob o título Há sempre um copo de mar para um homem navegar (retirado do poema Invenção de Orfeu, do poeta alagoano Jorge de Lima), os curadores convidaram cerca de 160 artistas para trabalhar o tema “arte e política”. O resultado exposto no Pavilhão Ciccillo Matarazzo é a organização de obras bastante diversificadas que, segundo o curador Agnaldo Farias, defendem a arte como uma extensão da política. “Queremos dar sentido aquilo que não é sentido. Nosso foco é a política da própria arte e o caráter experimental da arte como sendo político”, diz.

Entram em cena, artistas que utilizam uma mesma temática em diferentes graus e que, reunidos, fazem da 29ª edição um programa diferente daquele visto há dois anos. Percebe-se aqui, certa preferência pela fotografia como arte documental e uma chance de diálogo com antigos inimigos, os pichadores.

O coletivo Pixação SP, formado pelo fotógrafo Adriano Choque e pelos pichadores Djan Ivson e Rafael Augustaitiz, ganha espaço nesta edição da Bienal com uma série de fotografias, vídeos e tags (folhas A4 com assinaturas) que expõem a tradição do picho na capital paulista. Ivson e Augustaitiz faziam parte do grupo que invadiu a última edição da Bienal e pichou as paredes projetadas por Niemeyer. Caroline Pivetta, a jovem presa em flagrante e encarcerada por cinqüenta dias, recusou o convite para participar da mostra.

“Essa é uma Bienal de arte política e como o trabalho deles é político e está em toda cidade, eles nos procuraram. Nós acatamos, achamos que a reivindicação fazia sentido”, diz Farias sobre a aproximação com o grupo. O Pixação SP também foi convidado para participar dos chamados “terreiros”, espaços de reflexão, debate e convivência onde o público poderá discutir idéias com os próprios artistas. Ao todo, seis terreiros com diferentes temáticas acontecem durante a mostra.

“Quisemos apresentar documentação do trabalho dos pichadores e não os trabalhos propriamente ditos, já que eles acontecem no âmbito urbano. Comparecendo como documento, é uma forma de não trair o sentido da pesquisa deles e eles também não se traírem”, completa o curador. Parece haver, no entanto, uma sombra de dúvida quando estas documentações são acompanhadas na mostra por um texto que diz: “nem tudo que é arte o campo institucional pode abrigar com certeza”.

Além da pichação, algumas obras expostas aproximam-se da estética de rua e usam técnicas de grafite. Um desses exemplos é a instalação Os Mestres e as Criaturas Novas - Remixstyle (2010), do artista angolano Yonamine. No primeiro andar da exposição, uma grande sala penetrável forrada com jornais reciclados, é coberta por símbolos coloridos aplicados com a técnica de stencil, que enfatizam a sobreposição e a mixagem.

Nos demais andares do Pavilhão, sobretudo nos superiores, é possível perceber uma vasta reunião de séries fotográficas, muitas delas documentais. Posicionadas em salas abertas, muros brancos ou caixas de projeção, as fotografias ganham destaque na 29ª Bienal. Algumas, entretanto, perdem qualidade e a merecedora atenção, como no caso da série de Nan Goldin. Fotógrafa americana, responsável por imagens que registram personagens do underground nova-iorquino e parisiense, Goldin apresenta a série A Balada da Dependência Sexual. Em uma sala escura, uma projeção de 45 minutos passa rapidamente por fotografias feitas entre 1979 e 2004. A velocidade da seqüência deixa o visitante perder detalhes de imagens essenciais sobre vida noturna, feminismo e transgressão. O visitante que desejar assistir a projeção inteira deve sentar-se no chão.

Ao contrário dos personagens de Nan Goldin, outros retratados ganham destaque pelas fotografias de Zanele Muholi e Juliana Stein. Discutindo a sexualidade, ambas se dedicam a retratar bustos de figuras que brigam com seus corpos e aparência. Na série Faces and Phases, a africana Muholi aborda a feminilidade em fotografias de mulheres lésbicas, cuja aparência remete ao androginismo. Por outro lado, a série Sim e Não, da brasileira Stein, destaca rostos masculinos travestidos sem sutileza, exagerados em fantasias e maquiagem, que expressam as divergências entre o ser e o estar.

Fotografias servem também de base para outros trabalhos apresentados na 29ª. Um deles, como a série October 18, 1977, do alemão Gerhard Ritcher, apresenta telas em preto e branco cujas imagens são baseadas em fotografias de jornais. Esta série, no entanto, teve o pedido de empréstimo negado pelo MoMa, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e a aparece na Bienal somente por meio de catálogos expostos. Diante disso, a Fundação encomendou da artista peruana Sandra Gamarra a produção de cópias idênticas à série original. Gamarra é criadora da instituição fictícia LiMAC (Museu de Arte Contemporânea de Lima), “cuja coleção é composta unicamente por pinturas da artista que reproduzem, a partir de catálogos, as imagens das obras de arte que deseja adquirir”, diz o texto da mostra. Em October 18, 1977, a artista reproduz telas originais, que, por sua vez, são reproduções de fotografias de membros da organização guerrilheira alemã Baader Meinhof, quando estavam sob a guarda do Estado e foram encontrados mortos em suas celas.

“A rigor, estamos preocupados com o artista. Não estamos pensando na procedência dele, como também não estamos pensando qual é a mídia que ele utiliza”, diz Farias sobre a pluralidade das obras expostas este ano. “Hoje em dia, não há prevalência de uma ou outra linguagem. Esta é uma Bienal que há de tudo, até porque hoje o que se chama de artes visuais virou um território de fronteira, com as suas variadas interpretações e intersecções”, completa o curador.

Acostumada a envolver-se em polêmicas, a Bienal deste ano foi alertada, antes de sua abertura oficial, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre a série Inimigos, onde o artista pernambucano Gil Vicente se autorretrata prestes a cortar a garganta do presidente Lula e a atirar contra Fernando Henrique Cardoso, George Bush, Rainha Elizabeth II e outras personalidades. Com grande destaque na mostra, a série foi reprimida pela OAB por supostamente “incitar a violência”. Para Farias, “paradoxalmente, contra a lei é a OAB”. O artista, que já expôs a série em outras cidades brasileiras, reagiu com ironia e agradeceu a instituição pela propaganda gratuita.

Há ainda outro artista que causa algum desconforto a Bienal. Na instalação El Alma Nunca Piensa sin Imagen, o argentino Roberto Jacoby montou uma plataforma de apoio à candidata Dilma Rousseff, infringindo a lei eleitoral que proíbe propaganda de qualquer natureza em bens públicos, como o prédio da Bienal. Com apoio de um grupo de artistas de Buenos Aires – uniformizados com camisetas vermelhas com o logo da campanha da candidata do PT -, seriam realizados shows de música, discursos e debates em um palanque improvisado, cercado por imagem gigante do rosto de Rousseff ao lado de seu oponente, José Serra.

Farias admitiu a CartaCapital ter sido pego de surpresa ao acompanhar a montagem da obra. Na quarta-feira 22, dois dias antes de sua abertura, a Fundação Bienal consultou a Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo (PRE-SP) sobre que tipo de empecilhos a obra poderia causar à mostra. Segundo a assessoria da Fundação, o Ministério Público Federal orientou a Bienal a inibir qualquer tipo de propaganda eleitoral. “Conforme orientação do Ministério, a Bienal decidiu retirar a obra do espaço expositivo. A obra já está vedada com pano preto”, informou comunicado enviado à imprensa na quarta-feira à noite. No dia anterior, Farias já esboçava aflição. “Aconteceu uma coisa que nós não esperávamos. Até onde o artista havia me contado, era um trabalho de uma campanha política ficcional. Chegou aqui e não era. Não sou eu que vou dizer o que ele pode fazer e o que não pode, mas estou achando que isso vai dar bode”, disse o curador, com ar preocupado.

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