* originalmente publicada na Revista Mais #15 (junho/2012)
POR CAMILA ALAM
Não é de hoje que os
movimentos artísticos flertam com questões sociais e políticas. A
partir do modernismo e com força ainda maior desde a década de
1960, a arte passou a se pautar por questões críticas que moviam a
sociedade, promovendo o debate e o ativismo muito intrínsecos a
questões estéticas. No mundo em que vivemos hoje, onde há cada vez
mais espaço para o individualismo, o papel do artista talvez tenha
se tornado o de articulador social, aquele que não só trabalha com
a linguagem em si, mas usufrui dela para também discutir o mundo em
que vive, se possível, transformá-lo. “O
artista que não tem uma vocação social hoje está alienado como
pessoa, antiquado”, diz Baixo Ribeiro, sócio fundador da galeria
Choque Cultural, de São Paulo.
Para o professor
Miguel Chaia, da PUC-SP, a arte hoje envereda por lugares antes não
permitidos, fato que influencia diretamente a produção criativa. “O
atual confronto com a modernidade, a quebra de fronteiras entre
suportes, linguagens e áreas de conhecimento, além da aproximação
entre camadas de cultura, permitem que a arte atual engendre por
lócus de novas experimentações estéticas, acopladas à
tensões sociais existentes em torno do artista”, diz, em seu texto
A Arte entre a Autonomia e a Instrumentação, de 2007. Neste
sentido, não há como pensar em um artista contemporâneo que não
associe sua obra a uma questão social ou política. Ou ainda, que
não pense o mundo em que vive para tentar fazer dele um lugar
melhor. Monica Nador, 57 anos, Elisa Bracher, 47 anos, Daniel Melim,
33, e Thiago Mundano, 26, são exemplos de artistas de diferentes
gerações, bem sucedidos dentro do mercado contemporâneo, que, cada
um a sua maneira, viram no engajamento social uma maneira de utilizar
a arte como meio transformador da sociedade.
Formada em Artes
Plásticas pelas Fundação Armando Alvares Penteado, Elisa se
apaixonou pela gravura no último ano da faculdade, período em que
estudou com Evandro Carlos Jardim, mestre na arte de ensinar e criar.
“Nesta época, queria que as linhas dos meus desenhos se
sustentassem sozinhas, então comecei a fazer esculturas”, lembra.
E foi muito por causa de suas esculturas que nasceu, há 11 anos, o
que hoje é chamado de Instituto Acaia, localizado na zona oeste de
São Paulo.
Próximo ao Ceagesp,
maior entreposto alimentício da América Latina, um galpão servia
de ateliê para a artista. Ao redor, duas favelas, a do Nove e a da
Linha. “Como faço estruturas grandes, tive que encontrar um lugar
pra trabalhar onde eu pudesse entrar com caminhão. Naquela época
ninguém conhecia muito a região”, diz. Devido a criação de
grandes esculturas, Elisa montou uma estrutura quase industrial no
galpão, onde precisaria de mão de obra para ajudá-la com suas
grandes criações em madeira. “Quando vi a molecada na rua,
convidei-os para uma aula de marcenaria por semana”.
Com o passar do tempo,
Elisa sentiu necessidade de ampliar o projeto, oferendo lanche ou
outras atividades que pudessem receber também as mães dessas
crianças, como oficinas de costura. Assim, meio por acaso, a artista
começou a montar o que hoje é um complexo que atende cerca de 400
pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos, e possui dois
braços interligados, um voltado ao ensino pré-vestibular e outro
localizado no Pantanal (MS) . O Instituto Acaia (que significa útero,
em tupi), ainda se localiza no mesmo galpão e oferece não só
oficinas de marcenaria, mas também de bordado, dança, xilogravura,
música, culinária e vídeo. Além de biblioteca, atendimento
psicológico e jurídico, aulas de capoeira e bijuteria.
“O que temos aqui
não são cursos de arte. Estamos usando o instrumental de arte e o
potencial de reflexão e abstração que a arte nos dá para ajudar
esses meninos a se estruturarem internamente”, diz Elisa. Para que
este contato fosse produtivo, a artista viu a necessidade de manter
relações com as duas comunidades mais próximas da maneira mais
clara e direta possível. “Uma coisa determinante para aumentar o
número de alunos foi esperar um tempo grande para que a comunidade
passasse a confiar na gente. Esse foi o grande passo que demos e a
coisa que mais preservamos hoje em dia”. Para isso, foram criados
dois “barracos-escola” em cada uma das favelas atendidas pelo
Instituto. O mais antigo é o da favela do Nove, criado em 2005, e o
mais recente fica dentro da Favela da Linha, instalado desde 2009.
Nesses galpões inseridos nas comunidades, são realizadas algumas
oficinas no local e o trabalho do Instituto pode ser divulgado ainda
mais internamente. É uma maneira de quebrar o gelo, já que ainda é
vista certa resistência por parte da população em frequentar as
oficinas.
Com o trabalho do
Instituto já bem encaminhado, Elisa passou a se dedicar também ao
cinema. Um de seus projetos inclui viajar para o Nordeste e visitar a
família de alguns dos alunos que frequentam o Instituto, com quem
mantém relação de cumplicidade. Com algumas horas já filmadas, a
artista pretende lançar um documentário com o material. “Aqui é
muito diferente da realidade que eu fui criada, mas o meu meio é
esse aqui, é o que eu gosto.”
Foi
também longe do seu ambiente natural que outra artista percebeu a
força de sua arte. Natural de São José dos Campos, interior de São
Paulo, Mônica Nador também se formou em Artes Plásticas pela FAAP,
depois de uma passagem pela arquitetura. “Na faculdade, entrei
nesse universo da arte que é de individuação profunda, descobri
que estava mergulhada em um meio muito conservador e comecei a
questioná-lo”, diz. A partir do mestrado, pela Universidade de São
Paulo, a artista percebeu que poderia levar a arte a uma esfera menos
individual e mais social e coletiva. Começou então, de maneira
quase experimental, a pintar muros da cidade, gerando, segundo sua
definição, uma “arte útil”.
Com
o projeto Paredes Pinturas passou por São Paulo, Bahia,
Amazônia, Cuba, México, para finalmente voltar à capital paulista.
Desde 2004, Mônica mudou-se para um dos bairros mais violentos da
cidade, o Jardim Miriam, na periferia sul de São Paulo. Lá iniciou
o Jardim Miriam Arte Clube, também conhecido como JAMAC, projeto que
apresenta aos jovens do bairro maneiras e alternativas de trabalhar
com arte.
Por
meio principalmente de oficinas de stencil, a artista ensina aos
jovens como ampliar seus horizontes culturais, que mais tarde são
compartilhados com toda comunidade. Na oficina, eles aprendem a
fabricar e aplicar a técnica do stencil, para depois utilizá-la em
muros ou tecidos. Muitas das casas, escolas e comércios do bairro
tem suas fachadas pintadas pela artista e seus “ajudantes”. As
oficinas também geraram os frutos de sua última exposição,
intitulada Autoria
Compartilhada, realizada
em novembro passado pela galera Luciana Britto, a mesma que
representa a artista. Na exposição, a artista apresentou
padronagens criadas por ela e pelos jovens do JAMAC.
O
clube, hoje denominado Ponto de Cultura pelo Governo Federal, também
apresenta mensalmente o Café Filosófico e o Cine Jamac, que reúne
a comunidade para discutir diferentes temas em torno da cultura, seja
por meio do debate ou do audiovisual. Para o professor Miguel Chaia,
este projeto “levanta questões que remetem ao significado da
origem da arte, quando não havia ainda separação entre arte e
sociedade, arte e religião, produtor e obra”. Fã de pensadores
brasileiros como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, a artista busca que a
comunidade possa, por meio da arte, se autorrepresentar. Para isso,
aposta num projeto que una stencil e comércio. Dentro das oficinas,
criam estampas em tecido que depois servem para encapar cadernos,
fichários ou pastas. “O meu maior desejo é ver o projeto
acontecer de verdade, que possa realmente gerar empregos e se
sustentar sozinho. Aos poucos está rolando”, diz.
O
aumento da autoestima da comunidade é, aliás, uma das principais
mudanças notadas por esses artistas. Thiago Mundano também é
desses que acreditam no poder transformador da arte e percebe isso
claramente no trabalho em que vem realizando pelos últimos anos.
Anônimo até pouco tempo e bastante reservado, o grafiteiro já
espalhou pelos muros da cidade diversas frases que se referem à
questões ligadas a vida dos moradores de São Paulo. Trânsito, meio
ambiente e desigualdades sociais e políticas são temas frequentes
de suas obras. Por suas andanças pela cidade, passou a conviver
diariamente com moradores de rua e catadores de material reciclável.
Um dia, ao cruzar com um desses catadores que puxam carroça,
resolveu pintá-la com desenhos e frases sobre reciclagem. Desde
então, já se passaram cinco anos e Mundano pintou o veículo de 160
catadores, originando o projeto Pimp my Carroça.
Inspirado
nos programas de televisão que “pimpam”, ou seja, fazem uma bela
reforma, em automóveis, o artista lançou o projeto em março deste
ano por meio de colaboração coletiva na internet. Assim, todos que
apoiam a ideia, podem contribuir com a verba que quiserem. O projeto
Pimp my Carroça não só pinta as carroças, como também as
transforma em veículos mais seguros para transitar pela cidade, com
marcas de sinalização, espelhos e freios. Além disso, o catador de
material ainda passa por avaliação médica de um clínico geral, um
oftalmologista e um especialista em dependência química, além de
ganhar alimentação e uma camiseta do projeto. “Acredito que esta
seja uma maneira de chamar atenção para o trabalho dos catadores,
que são hoje responsáveis por recolher 90% do lixo reciclável da
cidade de São Paulo. Muitos estão a margem da sociedade, mas eles
são agentes importantes para a sustentabilidade”, diz Mundano,
notando que, hoje, apenas 1% das 17 mil toneladas de lixo da cidade é
reciclado. “É um dado vergonhoso”.
Mundano
começou a se dar conta destes e outros dados há cerca de cinco
anos, quando deu inicio as atividades com os catadores. De lá pra
cá, tornou-se quase especialista no assunto, do qual fala com
naturalidade e propriedade. Por isso, foi convidado a participar do
ciclo de conferências TEDx, que acontece em diferentes partes do
mundo e discute ideias relacionadas à tecnologia, design e
entretenimento. “Agora, todo lugar que eu vou, começo a reparar
no lixo. Em Salvador, por exemplo, estão a anos luz à frente de São
Paulo”, diz, referindo-se ao lixão de Canabrava, que hoje é fonte
de renda de centenas de famílias soteropolitanas graças à
parcerias bem sucedidas entre ONGs e o governo do estado. “Esta é
uma luta que tomei pra mim, mas na verdade é de todos nós. Ainda
existem muitas peças desencaixadas, porque precisamos ainda mudar o
pensamento da sociedade, aprender a desperdiçar menos. Mas acredito,
com certeza, que é função da arte promover a mudança, ela pode
ser realmente um mecanismo para o beneficio social, porque gera a
reflexão”, diz.
É
também por meio da arte e da reflexão que outro grafiteiro, Daniel
Melim, começou a desenvolver o que hoje chama de Projeto Jardim
Limpão, criado por ele em 2006. Representado pela galeria Choque
Cultural, de São Paulo, Melim é hoje um dos mais prestigiados
artistas da chamada street art nacional,
hoje em alta entre colecionadores e amantes de arte
contemporânea. Criado no Jardim Leblon, em São Bernado do Campo,
vizinho ao Limpão, Melim sempre frequentou o bairro, o que lhe deu
liberdade para, já adulto, iniciar espontaneamente o projeto. O que
começou com algumas reuniões esporádicas para ensinar crianças a
técnica do grafite, ainda em 2006, hoje se apoia em aulas semanais
sobre linguagens visuais, ministradas pelo artista na sede da
comunidade para cerca de 20 jovens, entre 7 e 15 anos. As aulas aliam
o aprendizado dentro do ateliê com a pratica nas ruas e vielas do
bairro.
“No
começo era muito aleatório, as oficinas aconteciam quando dava. Mas
com as aulas, semanais o projeto ganhou mais força. Hoje estamos
mais bem organizados e a molecadinha está mais consciente”, diz
Melim. “Também crescemos ao ter maior abertura com os pais. Hoje
eles vem nos procurar pra falar, por exemplo, que o filho não está
indo bem na escola”. Em 2010, o projeto Jardim Limpão foi
selecionado pelo programa para a valorização de iniciativas
culturais do município de São Bernardo do Campo, o VAI-ABC. Por
meio do VAI e por investimento próprio, o artista mantém o projeto,
que às vezes também recebe doações de amigos. Alguns dos
trabalhos da turma de alunos de Melim já foram expostos no exterior,
com a ajuda da ABC Trust, ONG americana focada em ajudar crianças
brasileiras em condições vulneráveis.
Filho
de pai metalúrgico e mãe professora, Melim é formado em Educação
Artística, pela FATEA de São Bernardo, e começou a carreira como
arte educador. Sonha, por exemplo, com o dia que um de seus atuais
alunos possa dar continuidade ao projeto. “Tento passar pra eles o
máximo de conteúdo, para que eles se tornem multiplicadores”,
diz. Para Melim, o projeto o leva a questionamentos pessoais e
influencia diretamente na sua produção artística. “Com o
convívio, acabo vendo várias situações do bairro, como a maneira
como violência ou o trabalho afeta a vida deles. Quando chego em
casa para pintar, acabo trazendo um pouco disso tudo. Sou muito grato
pelo projeto por me questionar sempre e não me manter estático”.
Baixo
Ribeiro complementa esta fala de Melim ao dizer que o questionamento
é a maior função do artista no mundo de hoje. “A função do
artista é trabalhar com a linguagem, mas não somente. O que se tem
que fazer agora é aproveitar os novos meios, falar com pessoas e
públicos que não são ouvidos, focar a visão na inclusão”,
completa. “A arte envolve qualquer pessoa, independente da língua
que ela fale ou da classe social. Historicamente, tratamos a arte
como coisa de elite, por isso houve um processo de afastamento da
pessoas da arte. Isso foi uma escolha de mercado para gerar maior
valorização”. Para o curador, estamos hoje invertendo este
processo, trazendo cada vez mais a arte para esferas antes não
atingidas. “Para artista não interessa quem está vendo, se é o
morador de rua ou um rico colecionador. O prazer, no final, está em
que qualquer pessoa curta”.