*originalmente publicada na revista Mais nº 18
Escrever
dedicatórias em livros se tornou um gesto comum entre aqueles que
presenteiam. Mas, muitas vezes, elas escondem mais histórias que um
grande romance
Dedicar.
Do latim, dedicare. A cada emprego, o verbo adquire definição
diferente. As mais comuns talvez sejam oferecer, destinar. Mas também
o vale para, poeticamente, devotar, tributar, até consagrar. Mais
ainda, sacrificar-se por. Dedicar é demonstrar carinho, é provar,
com gestos ou palavras, que há algo ali especial para alguém. São
nos livros que as dedicatórias ganham lugar de destaque, sempre nas
primeiras páginas. Endereçados a alguém, estes objetos de caráter
tão afetivo ganham valor ainda mais especial. Desde a antiguidade, o
gesto de dedicar é comum. Os mecenas, por exemplo, recebiam
dedicatórias dos artistas que financiavam. Muitos pintores
retratavam seus mecenas em suas obras, sempre em lugar de destaque.
Nas letras, o agradecimento poderia estar embutido nas próprias
linhas. Luís de Camões, por exemplo, dedicou em versos a epopeia Os
Lusíadas ao jovem rei D. Sebastião. Mas este costume, trazido
aos dias atuais, remete muito mais a um gesto carinho, trocado entre
aqueles que se conectam, de alguma forma, ao objeto livro.
Dono
de uma das maiores e mais importantes coleções particulares do
Brasil, o empresário José Mindlin, morto em 2010, reunia em sua
casa uma seleção especial de dedicatórias. Muitas delas, feitas
por grandes autores ao próprio empresário. Sua neta, Lucia Loeb,
reúne agora parte desta coleção no livro Tão Falada Biblioteca
José e Guita Mindlin, a ser lançado pela EDUSP no começo
do ano. O próprio nome do livro revela sobre o apego de Mindlin às
dedicatórias. Quem conta é a historiadora Eloá Chouzal,
responsável pelo texto que abre a edição. “Quando José Mindlin
lançou sua autobiografia Uma vida entre livros,
sempre que alguém o visitava ele dava o exemplar disponível em sua
casa. A edição esgotou-se rapidamente e Cristina Antunes, sua
bibliotecária, o alertou de que a biblioteca Mindlin corria o risco
de ficar sem nenhum. Então, Dr. José fez, num dos livros, uma
dedicatória à sua própria biblioteca, garantindo que ele,
“marcado”, não seria presenteado a mais ninguém”.
Demonstrando
carinho com a própria coleção, o empresário inicia esta
dedicatória especial com “Para a tão falada biblioteca José e
Guita Mindlin”, e segue com bom humor, “atendendo a repetidas
reclamações das bibliotecárias, encabeçadas por Cristina Antunes,
oferece este exemplar de seu livro o autor”. Colecionador nato
desde os tempos de menino, Mindlin reuniu em sua coleção
dedicatórias diversas. Mas as que recebeu para sua própria
biblioteca são as tratadas com maior carinho e reunidas no livro de
Lucia. Autores como Carlos Drummond, João Cabral de Melo Neto,
Raquel de Queiroz, Manuel Bandeira, Saramago e muitos outros fizeram
suas homenagens à Mindlin e sua esposa, Guita. Toda sua coleção
está acolhida hoje pela USP, boa parte digitalizada, e será
transferida para prédio próprio no início de 2013. “Eu queria
que fosse uma surpresa. Por outro lado, meu avô mais do que ninguém,
seria a pessoa indicada para me dizer o que e onde procurar. Passamos
algumas boas tardes olhando e procurando dedicatórias. Infelizmente
não consegui finalizar a tempo de mostrar a ele, mas assim mesmo
decidi finalizar o projeto”, diz.
As
dedicatórias tem espaço especial também na coleção de Aldo
Bocchini, fundador de uma grande livraria em São Paulo e hoje dono
de um sebo virtual. “Hoje, como sebeiro, ao manusear os volumes de
uma biblioteca adquirida, sou o voyeur que o ex-dono dos livros nem
suspeita existir”. Aldo sabe que a nossa relação com os livros
são especiais e que os tratamos de maneira diferente de qualquer
outro objeto que possuímos. Ele não gosta, por exemplo, de dedicar
ou escrever seu nome. Tampouco carimba, colamos etiqueta ou
ex-libris. Mas tende a
usá-los como caixinhas, guardando coisas preciosas.
“Por
causa do conteúdo, não do objeto em si, confiamos nos livros e
guardamos neles cédulas de dinheiro, receitas médicas e de bolo,
passagens, fotografias, cartões de visita, cupons fiscais, cabelos
de pessoa amada, bilhetes de loteria jamais conferidos, recortes de
jornais, papéis com lembretes para nós mesmos - que vamos esquecer
para sempre. Também por isso escrevemos dedicatórias simpáticas,
amorosas, que às vezes têm mais a ver conosco do que com a pessoa
presenteada”. Aldo acha que, por isso, talvez existam tantos livros
com dedicatórias em sebos. Frases como “li e pensei em você” ou
"mudou minha maneira de ver o mundo, achei que você também ia
gostar" são bastante comuns nestes casos. “Nestas ocasiões,
o livro vai para o sebo da esquina na primeira oportunidade”, diz.
A
escritora Veronica Stigger é daquelas que gosta de procurar
dedicatórias em sebos. Autora de O
Trágico e outras comédias
e Os
anões,
Veronica acredita que a dedicatória torna qualquer exemplar mais
especial. “Ela acrescenta
outro sentido ao livro. É como se criasse uma narrativa paralela,
que faz menção a algo de exterior ao livro, a uma relação que se
dá - ou se deu, mesmo que muito rapidamente - fora do âmbito do
livro”. Nos sebos, ela imagina os caminhos que o livro teria
percorrido para chegar em suas mãos. Mas em casa, é o marido - o
crítico, poeta e ensaísta Eduardo Sterzi - que lhe presenteia com
as mais especiais. “A que mais amo foi escrita no livro Formless,
da Rosalind Krauss e do Yve-Alain Bois. Ele me deu de aniversário em
2004 e acabou incluída, como poema, em seu livro Aleijão,
lançado
em 2009”,
diz.
O poema, intitulado Nascença,
diz: “Assim / como a forma / (digamos, do poema) / é produto / de
desgaste – resto, / portanto; escória / cumulada / na órbita /
fraca do gozo / originário −, // assim / teu corpo, exausto / e
raro (sangue / do sangue / do poema), nasce / de novo / a cada
aniversário // Com amor / Eduardo”.
Dedicatórias
mais pessoais como estas, daquelas que são pensadas e inspiradas nas
pessoas que a recebem, são o mote do blog Eu te dedico, criado pela
designer mineira Mariana Gogu. “Eu sempre gostei muito de
dedicatórias, de receber e dar. Fiquei pensando como deveria haver
várias por aí perdidas, escondidas na estante, sem serem
compartilhadas”, diz. No ar desde fevereiro deste ano, a página é
alimentada colaborativamente, com histórias de anônimos que enviam
suas dedicatórias preferidas. Geralmente, elas são recheadas de
histórias, casos de amor, aniversários, viagens. Além de postar as
dedicatórias, Mariana pede que cada pessoa explique o contexto em
que aquela dedicatória foi criada. “Quando se lê o contexto, toda
história muda”, diz.
Mariana
costuma dizer que um livro com dedicatória conta duas histórias,
uma que começa no primeiro capítulo e outra que começou antes,
entre duas pessoas. Uma destas histórias é a sua e de seu irmão
Douglas, revelada no blog depois de muito Mariana insistir pela
autorização. Nas primeiras páginas do livro Contos de
maginário Mistério, de Edgar
Allan Poe, Douglas conta a irmã que pouco escreve dedicatórias por
medo de terminarem no site. Mas, por fim, revela o motivo desta
espacial: tinha acabado de saber que seria pai. Ela lembra também da
primeira dedicatória que recebeu, escrita por sua madrinha na capa
do infantil Nossos melhores amigos.
Ela dizia: “Para a Mariana aprender a gostar de ler, com amor,
Didinha Lelé”. A madrinha já deve saber que, pelo jeito, apelo
funcionou.