quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

correnteza abaixo



*originalmente publicada na revista Go Outside / Agosto 2012 

O sueco Christian Bodegren passou 280 dias atravessando os rios da América do Sul em um caiaque emprestado



Não foi por acaso que o sueco Christian Bodegren, de 38 anos, se tornou um aventureiro. Nascido e criado em uma vila ao sul da Suécia, com apenas 300 habitantes, cresceu encantado com a ideia de poder conhecer o que lhe era mostrado nos livros de geografia da escola. Quando se deu conta, estava viajando o mundo sozinho. Sua primeira viagem foi ao Egito e à Israel, no começo da década de 1990. “Estar ali era como pisar em um outro mundo, completamente diferente da aldeia verde de onde eu vinha. O mundo abriu as portas para mim e depois disso senti uma interminável necessidade de viver novas experiências”. Depois passear pela savana africana, subir as montanhas Grand Paradiso, na Itália, e atravessar o deserto do Sahara montado em dromedários, em junho deste ano ele completou outro grande feito. Por nove meses, navegou sozinho em um caiaque pelos rios da América do Sul, partindo da Venezuela até chegar a Argentina.

Li alguns livros sobre a história dos primeiros homens que atravessaram o continente pelos rios e fiquei fascinado pela região. O sonho levou a uma ideia que, por fim, tornou-se realidade”, diz. A preparação para a viagem durou alguns meses. Depois de estudar a fundo mapas, costumes, correntezas e coletar informações sobre como as populações ribeirinhas se transportam, Bodegren escolheu o caiaque como forma de transporte. Experiente remador, ele costumava competir na modalidade quando jovem. Em setembro de 2011, chegou ao ponto de partida de sua jornada, Caracas, na Venezuela.

Ao chegar lá, porém, teve seus equipamentos perdidos no aeroporto, o que o fez ter de repensar toda a expedição. Com a ajuda do amigo Aramis Mateo, proprietário de uma empresa de turismo com caiaque na Venezuela, conseguiu um antigo modelo, que precisou reformar. Assim como os navegadores o fazem, batizou a embarcação emprestada assim que estava pronta. Com o The Green Arrow [a seta verde] partiu pelo rio Orinoco em direção a parte baixa do continente. Seus dias passavam entre remadas, cochilos na rede, muitas picadas de mosquitos e encontros que o marcaram, com animais selvagens ou pessoas que o ajudaram pelo caminho. Vez ou outra, percebia uma movimentação estranha, que deduziu fazer parte do tráfego de drogas que rondeia a região das fronteiras.

Talvez eu tenha tido sorte, mas todas as histórias que me contaram sobre saqueadores pelos rios da Venezuela e Colômbia me parecem como Eldorado, um mito”, disse em novembro do ano passado em seu diário on line, atualizado graças a um sistema de satélite ligado ao seu netbook com bateria solar. O sistema também permitia a parentes e amigos acompanhar a viagem pela internet. Com GPS integrado ao caiaque, a rota do remador era atualizada em tempo real. “Eu imagino o que Antonio Raposo Tavares diria dessa tecnologia”, diz no mesmo diário, citando o explorador português que percorreu mais de 10 mil quilômetros pelos rios brasileiros entre 1648 e 1651.

De fronteira em fronteira, Bodegren passou pelos rios Madeira, Negro, Amazonas, Paraná. Neste último, encontrou um grupo com cerca de 150 remadores, participantes de um encontro anual de caiaques. Bodegren os acompanhou em diferentes rotas por dois dias, até dar continuidade ao seu trajeto rumo a Buenos Aires, pelo Rio De La Plata. Remar contra corrente durante a temporada de chuva foi sua maior dificuldade. Apesar disso, depois de 280 dias, chegou a uma praia na província de Tigre, a cerca de 1 hora da capital argentina, celebrando com espumante e a bandeira da Suécia.

As referências a outras viagens e expedições são temas frequentes no diário do sueco e demonstram o tempo que remador gastou pesquisando histórias e curiosidades sobre a região. De maneira quase didática, ele escreve sobre a vida selvagem, os animais que encontra pelo caminho e até arrisca dar receitas de pratos que inventa, como o sushi de piranha (que na verdade está mais para ceviche). Entre um desabafo e outro sobre os caminhos que percorre, o aventureiro conta pequenas histórias de outros exploradores e de pessoas que encontrou pelo caminho – entre elas, um casal de brasileiros que o hospedou durante o Natal, moradores de uma comunidade ribeirinha próxima ao Rio Madeira. “Conhecer pessoas e lidar com as diferenças são as coisas mais interessantes de toda viagem”, diz, frisando que não encontra problema em viajar sozinho, “exceto pela vontade de dividir a aventura com alguém”.

Quando estava viajando pelo Sahara, atravessando o deserto de leste à oeste entre 2009 e 2010, o sueco aprendeu que para se fazer uma expedição é necessário também se preocupar com algumas burocracias e costumes locais. Viajando com quatro dromedários, ele teve que vendê-los em uma parte do caminho, pois não conseguiria atravessar com eles a fronteira entre a Líbia e a Algeria. O que ele não sabia é que a venda dos animais é proibida em toda região, o que fez ser condenado pela Tunísia a ficar cinco anos sem retornar. “Eu provavelmente sou o único sueco a ter cometido um crime como esse em toda história. Prometi a mim mesmo que não iria vender nenhum dromedário na Venezuela”, brinca.

Mal retornou ao seu país, Bodegren já pensa em planejar sua próxima viagem, apesar de não saber qual seria seu destino. Sua condição é que seja em um local completamente diferente de qualquer um que já tenha ido, com condições climáticas e culturais diversas. “Tudo depende do trabalho, do dinheiro e da democracia”, diz. Atualmente morando na Noruega, ele trabalha como colocador de andaimes em plataformas de petróleo em alto mar. O que também é uma aventura, já que, para estar apto a trabalhar, teve que passar por uma série de testes e treinamentos específicos, incluindo evacuação de helicóptero embaixo d'agua. “Me pergunto quantas toneladas de andaimes tive que organizar para poder pagar minhas aventuras. Não tenho ideia e também prefiro nem pensar nisso”.

Quando está de folga, volta a Suécia e junta dinheiro trabalhando em casa como carpinteiro. Sua vida se resume, basicamente, a trabalhar para viajar. “Quando volto pra casa, fico sonhando com novas aventuras, em ter uma vida onde eu sempre esteja em algum lugar. Provavelmente, sempre será assim, já é parte de mim”, diz. Para o remador, a sensação de voltar a casa é confortante, mas é misturada a certa tristeza. Bodegren diz nascer um sentimento muito especial naqueles que se dedicam a passar tanto tempo na natureza. “É uma sensação poderosa de liberdade. Onde a mente se liberta de toda confusão e tudo parece muito mais óbvio e claro”.



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