*originalmente publicada na Revista Mais nº17
No outono do ano 2000, na cidade de Santos, Paulo Eduardo Aagaard, o
Pauê, caminhava rumo a academia de ginástica. O trajeto era
repetido todos os dias, geralmente na parte da noite, depois que o
jovem saía do cursinho. Ir a academia, assim como surfar, fazia
parte de sua rotina. O trajeto era cortado por uma linha de trem,
desativada há anos. Por uma dessas razões inexplicáveis da vida,
naquele dia, passava por aqueles trilhos uma locomotiva. Sem
perceber, Pauê atravessou a linha e acordou no hospital, com os
paramédicos avisando que ele havia perdido parte das duas pernas.
Pauê tinha 18 anos e teve que reaprender a viver após o acidente
que quase o matou. Mas, de certa forma, a fatalidade foi também
responsável por transformar o garoto em homem. “Ele teve que
amadurecer na marra”, conta sua mãe, Maria Cristina. Hoje, aos 30,
o esportista, fisioterapeuta e palestrante conta sua história de
maneira bem humorada e busca levar motivação e incentivo àqueles
que, como ele, precisam diariamente superar desafios.
Aconteceu tudo muito rápido. Maria Cristina estava num curso
noturno, quando recebeu a notícia do acidente do filho primogênito.
“Parecia que estava num pesadelo, aquele tipo de coisa que nunca
achamos que vai acontecer com a gente. Cheguei no hospital, encontrei
a família chorando e aí vi que o negócio era grave”. Ela estava
ao lado do filho, do ex marido Paulo e do caçula Bruno, quando os
médicos lhe contaram que Pauê havia perdido parte das pernas.
A equipe lhe disse que dali a um mês ele voltaria a andar. Dias na
UTI, muita dor, diversas cirurgias e três meses depois, não só
Pauê estava em pé, como já estava de volta ao mar, surfando. Ainda
se acostumando com um novo corpo, conta ter tomado uma decisão,
dessas que mudam pra sempre a maneira de enxergarmos a vida. “O que
temos de mais precioso é o livre arbítrio e as escolhas que fazemos
são a maior razão da nossa vida. Na hora eu pensei: daqui pra
frente minha vida vai ser assim. Cabe a mim decidir o melhor caminho
e eu decidi ser feliz”.
A decisão de voltar a surfar foi o ponta pé inicial para uma nova
vida. É no mar que Pauê encontra, até hoje, harmonia. Naquele
momento, não seria diferente. “Já é difícil se equilibrar na
prancha com as duas pernas, imagina com prótese”, diz. Depois de
alguns meses de treinamento, ele conseguiu achar a melhor técnica
para cair na água: sem próteses, de joelhos, com o leash (aquela
cordinha que segura a prancha ao tornozelo do atleta) adaptado a
cintura. Pauê se tornou assim o primeiro surfista biamputado do
mundo e não há ninguém que surfe como ele assim. A readaptação
aconteceu até nas vestimentas. A marca brasileira de surfwear
Mormaii fez para Pauê uma série de roupas de borracha apropriadas a
sua nova condição. Foi desta retomada ao esporte que ele pegou
gosto por testar seus limites. Reaprendeu a nadar – “no começo
não conseguia boiar, depois peguei o jeito” -, a andar de
bicicleta – “outro dia ainda levei um tombo” - e a correr, com
a ajuda de próteses de fibra de carbono especiais para o esporte e
feitas sob medida.
As conquistas começaram quando, ao unir os três esportes, Pauê
passou a se dedicar de corpo e alma ao triatlo. Treinava todos os
dias, sempre alternando as modalidades, seguindo planilhas com
acompanhamento de médicos e nutricionistas. Dois anos após o
acidente, o primeiro surfista biamputado do mundo era também o
para-atleta campeão brasileiro e mundial de triatlo. “O triatlo me
estimulava a enfrentar minhas próprias limitaçõs, minha briga era
comigo mesmo sempre”. Pauê se manteve campeão do Troféu Brasil
de Triatlo por cinco anos, entre 2002 e 2006. Também foi bronze nos
Jogos Pan Americanos realizados na República Dominicana, em 2003.
Depois de vencer pela quarta vez o Campeonato Internacional de
Triatlo, realizado pela CAF - Challanged Athletes Foundation, na
Califórnia, o atleta se encantou com um novo esporte e desde 2008 se
dedica a canoagem oceânica. “Com o tempo percebi que não bastava
mais competir comigo mesmo. Optei por fazer do esporte uma ferramenta
de comunicação, para passar a outras pessoas uma mensagem de
superação”.
Introdutor do esporte no Brasil, sete vezes campeão brasileiro de
canoagem olímpica, Fabio Paiva foi o responsável por levar Pauê ao
mundo da canoagem oceânica. Depois de um contato inicial com o
esporte, em provas de velocidade, Pauê percebeu na modalidade
oceânica a sensação de ir além do recorde. “Hoje, meu objetivo
não é quebrar recordes de tempo, mas fazer grandes desafios de
resistência ”, diz. Para Pauê, nada se compara a sensação de
estar sozinho na água. “Não me encontro em nenhum lugar mais que
na água. Quando estou lá no fundo é de verdade. E se, por algum
motivo, estou abatido ou mal humorado, preciso mergulhar”.
Com Fabio, pretende realizar um dos grandes feitos de sua carreira no
final deste ano, o projeto Superágua. A ideia é sair do Rio de
Janeiro de caiaque e percorrer 400 quilômetros até chegar a Santos.
A travessia durará dez dias, será inteira documentada e a
experiência servirá de material para futuras palestras em encontros
com estudantes. “As expedições contam com leis de incentivo e o
objetivo é sempre trazer um feedback educativo, focado no incentivo
ao esporte e na bandeira da superação”. Para o ano que vem,
planeja o projeto Super Bike, que levará Pauê e um outro convidado
a dar a volta na ilha de Florianópolis de bicicleta.
Pauê conta seus feitos e planos com tranquilidade, gesticula
bastante. Gosta de falar e é vaidoso. Mas o que mais chama atenção
no convívio com ele – dizem - é o bom humor. Diego Nunes, seu
sócio e amigo, conta que são raras as vezes em que o atleta está
de cara fechada. Os dois se conheceram há pouco tempo, cerca de 1
ano e meio, e juntos mantêm a empresa NP2, responsável pela
administração da carreira do atleta, assim como os projetos da Pauê
TV. Semanalmente, vídeos motivacionais são captados e lançados no
seu site oficial (WWW.paue.com.br).
“Conviver com o Pauê é diferente porque é uma motivação
diária. Não é todo dia que a gente acorda motivado, mas ele acaba
sendo em exemplo. E não é muito o perfil dele querer dar exemplo,
mas acontece de maneira natural”, diz.
A pedra no caminho pode ser um diamante / Pode ser que ela me
atrase / Pode ser que eu me adiante. Os versos são de Gabriel O
Pensador, na música Cavaleiro Andante, de 2005. O rapper carioca
dedicou essa música a Pauê, depois de conhecer a sua história por
um programa de tevê. Gabriel entrou em contato com a produção da
emissora e enviou um email ao atleta, estreitando ligações.
Inspirado pela história do garoto, passou, meio informalmente, a
divulgar os feitos de Pauê. “Uma vez fui fazer um show no Guarujá
e lembrei de convidá-lo. Fiz um improviso sobre ele numa música que
fala de surf, ele ficou todo orgulhoso. Ele consegue transformar em
palavras uma experiência muito forte que teve. Tem habilidade e
inteligência para traduzir isso pra quem tá de fora e conseguir
inspirar pessoas”, diz Gabriel, que é um dos personagens do
documentário O passo de um vencedor. Dirigido po Fabio
Cappellini, o filme será lançado no fim do ano, com incentivo da
Lei Rouanet, e é baseado no livro Caminhando com as próprias
pernas, que Pauê escreveu em 2008.
Hoje, o esportista está vivendo uma de suas grandes fases. Prestes a
se casar – ele namora a arquiteta Verena há oito anos -, realizar
um grande desafio de canoa e lançar o filme, ele sonha em poder
montar no Brasil uma entidade a exemplo a CAF, que auxilie atletas
deficientes e organize grandes eventos, afim de aumentar o bem estar,
auto estima e qualidade de vida. Ao atravessar aquela linha de trem
desativada, Pauê transformou sua vida e de seus familiares. Ao
escolher o caminho da felicidade, conseguiu ir além. “Em vários
momentos eu me perguntei porque isso aconteceu comigo. Mas raiva
mesmo, nunca senti. Acho que tive melhor interpretação de todas,
consegui enxergar com toda força que o acidente era uma nova chance.
Assim anulei qualquer mal criação futura com a vida”.
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