segunda-feira, 18 de outubro de 2010

As cores de Alá

De grande impacto visual e pouco difundida no Brasil, a arte islâmica tem ganhado cada vez mais espaço em museus ocidentais. Recentemente, um importante acervo foi adquirido pelo Los Angeles County Museum of Art, dos Estados Unidos. O francês Museu do Louvre prepara-se para abrir em 2011 novas galerias dedicadas a este tema. A cidade de Toronto, no Canadá, vai receber (em 2013) o Museu Aga Khan, inteiro dedicado a preservação da cultura islâmica. Enquanto isso, no Brasil, o Rio de Janeiro recebe uma grande mostra, intitulada Islã, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, entre 12 de outubro e 26 de dezembro. No próximo ano, a exposição segue para São Paulo e Brasília.

Fabricadas a partir do nascimento do mundo mulçumano, no século VII, estas obras vem especialmente de museus da Síria, como os de Damasco e Aleppo, e de países no norte da África. São exibidas no Brasil mais de 300 peças, entre mobiliário e vestuário, além de utensílios para os mais diversos usos, cerâmicas, caligrafias e instrumentos. A maioria delas nunca saiu de seus países de origem e sua vinda é o resultado de uma negociação de quatro anos entre a Síria e o Centro de Pesquisa América do Sul-Países Árabes (BibliASPA). Esta grande exposição proporciona um olhar cuidadoso sobre peças fabricadas ao longo dos últimos treze séculos, que espelham uma maneira diferente de entender e usufruir a arte no Oriente.

“Trata-se de uma exposição sobre a cultura islâmica. É mais uma questão da arte em seu sentido orgânico, diluída na vida cotidiana, resumida em objetos”, diz Rodolfo Athayde, que assina a curadoria da mostra ao lado do Prof. Dr. Paulo Daniel Farah, diretor da BibliASPA. A estes objetos meticulosamente fabricados por artesãos anônimos estão resumidos muitos dos conceitos da arte islâmica, que se baseia na cultura religiosa para formar padrões decorativos de significados diversos. Os objetos exibidos no Brasil não só estão vinculados a questões religiosas, mas refletem a busca pela aliança entre a praticidade e o requinte. “Há um dito muçulmano que anuncia: ‘Deus é belo e aprecia a beleza’. Isso demonstra que, sob o prisma islâmico, o belo deve ser admirado e almejado em diferentes contextos, não apenas quando retrata aspectos religiosos”, diz Farah.
Ao contrário da prática ocidental – em sua maioria, cristã – pinturas e esculturas figurativas são deixadas de lado, sobretudo em ambientes religiosos, onde a idolatria é contestada. Objetos funcionais de cerâmica, bronze ou vidro são adornados com desenhos padronizados, que geralmente remetem a elementos vegetais ou formas geométricas. A figura humana é pouco explorada, mas ainda aparece em objetos de uso doméstico ou quadros, longe das mesquitas. Alguns dos padrões, como os de flores nas cerâmicas, sofreram influência chinesa. Outros têm resquícios Império Romano Oriental. Esta mistura de referências que atravessam o tempo foi traduzida em uma identidade única, cuja mistura de cores fortes e formas diversas, impressiona pela riqueza de detalhes e ultrapassa questões de credo.


Estes complexos traços padronizados criam uma proposital impressão de repetição e funcionam como uma maneira de lembrar o infinito poder divino. “Os padrões geométricos são parte da busca de uma forma abstrata que remete à perfeição, ao equilíbrio. É o que permite uma idéia abstrata do divino, uma maneira de representá-lo”, diz Athayde. Recheada de detalhes, a exposição oferece ao visitante uma sala onde se pode perceber de que maneira são formados os padrões e como eles se formam geométrica ou organicamente. Tomando o térreo e o primeiro andar do CCBB, a mostra divide-se em partes para apresentar diferentes manifestações cronologicamente. “Os padrões expressam uma percepção que mescla a ideia da unidade de Deus e da inexistência de intermediários na relação com o divino”, completa Farah.

A entrada do edifício dará destaque à padronização da Grande Mesquita dos Omíadas, em Damasco, uma das primeiras obras arquitetônicas islâmicas, decorada ainda sob forte influência bizantina. Neste espaço, será criado um ambiente que remete as construções islâmicas, onde um pátio interno é adornado por um chafariz e azulejos. No segundo andar do CCBB, mais cenografia é apresentada ao visitante. Um portão decorado é a passagem para salas temáticas onde será introduzida parte da cultura mulçumana. Uma linha do tempo percorre dos séculos VII ao XX, mapas e plantas de mesquitas complementam o caráter documental.

As salas que seguem apresentam trabalhos em metal e objetos científicos, como astrolábios, balanças e globos terrestres. Eles remetem e homenageiam nomes da ciência e do pensamento que floresceram durante as dinastias islâmicas, como o filósofo persa Avicena e o andarilho Averroes. Também lembram os matemáticos que introduziram na Europa os algarismos arábicos, o conceito de número zero. “É possível recordar que o navegante Ibn Majid, que acompanhou Vasco da Gama em suas viagens, redigiu em 1489 um manual sobre a arte da navegação”, diz Farah. Em outro ambiente, são apresentadas peças da ourivesaria iraniana e síria, como pares de brincos em forma de animais, pulseiras em formatos orgânicos e moedas de diferentes épocas. Bichos e flores aparecem também em vestuário e objetos de uso diário e surgem como os poucos elementos figurativos desta arte.


Alguns dos destaques da mostra estão associados à caligrafia, considerada hoje a maior das artes islâmicas, enobrecida por sua aproximação com os livros sagrados. A complexa e artística escrita árabe é aqui representada em uma série de versões do Alcorão, alguns escritos sob pele de gazela ou tecidos bordados com fios de ouro, de diferentes épocas. “A interdição à representação de elementos figurativos de seres animados contribuiu para tornar a caligrafia uma arte extremamente refinada a partir da qual se desenvolvem os arabescos. Assim, a caligrafia é uma arte islâmica por excelência”, diz Farah. Nestas páginas, os textos são emoldurados com traços orgânicos e padrões geométricos que lembram os tapetes persas, que também são destacados na mostra em uma sala separada. Outros textos são escritos em direções diferentes, fazendo parecer em uma mesma página uma diversidade de intervenções.

Alguns fragmentos resultam de importantes achados arqueológicos, como uma pequena pedra com inscrições do século VIII, que representa um dos mais antigos testemunhos da língua árabe. A caligrafia ganha destaque também em utensílios de uso doméstico, como pratos e vasilhames, alguns do século XI. Ou ainda em grandes peças arquitetônicas, lapidadas com frases religiosas. A escrita representa unidade e identificação entre o povo islâmico que buscou, desde o princípio, sua implantação intelectual. “Dentro do mundo islâmico existe grande busca pelo conhecimento. Houve empenho em traduzir ao árabe praticamente toda a herança de obras greco-romanas. Eles destacaram e conservaram esta herança por meio de algumas figuras conhecidas, como Averroes, que regatou a teoria aristotélica, antes da retomada pelo mundo ocidental”, diz Athayde.

Hoje, as identidades islâmicas são múltiplas, incorporadas à outras tradições. Predominante no Oriente Médio e em porções da África e da Ásia, o islamismo reúne cerca de 1,5 bilhões de seguidores ao redor do mundo. Esta reunião de peças tão diversas exemplificam o caráter simbólico da arte islâmica, realizada sobre padrões culturais, políticos e religiosos muito claros. Mas também refletem a interação dos mulçumanos com outras culturas e populações de religiões distintas. “O Deus é único, mas sua criação é múltipla”, resume Farah.

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