segunda-feira, 14 de julho de 2008

Além das leis e das marcas

Com um pouco de atraso, colo embaixo a matéria "Além das leis e das marcas", publicada na CartaCapital nº 503.

Além das Leis e das Marcas

Política Cultural - Dois grandes institutos movimentam as artes em Porto Alegre


Em um grande prédio tombado pelo patrimônio histórico, as escadas de mármore e os vitrais dividem espaço com painéis de cores agressivas, que vão do teto ao chão. A sede do Santander Cultural, em Porto Alegre, une tradição e contemporaneidade na exposição Transfer, uma original e bem sucedida reunião de artistas urbanos sob curadoria de Lucas Ribeiro.

As paredes do lugar, antiga sede do Banco Nacional do Comércio, foram forradas com tábuas de madeira para receber, pelas mãos de grafiteiros, a arte que só se vê nas ruas. O resultado é a transformação de um espaço tradicional, de arquitetura neoclássica, em um ponto de encontro entre a cultura marginal e a convencionalmente chamada de erudita.

Nunca o Brasil abrigou uma mostra tão grande de street art. Apesar de o movimento ter raízes, sobretudo, em São Paulo, foi em Porto Alegre que mereceu um evento de tamanha proporção. Será fruto do acaso? Provavelmente, não.

Parece surgir na capital gaúcha, há algum tempo, um exemplo de política cultural diferente da mantida por outros centros urbanos do Brasil. Uma maneira, talvez, de tratar a cultura de forma integrada e, assim, mover as peças no cenário de toda uma região. Vê-se, na cidade, desde uma empresa que faz marketing cultural sem colocar sua marca à frente do projeto até um banco que não usa incentivo fiscal.

Além da instituição que abriga Transfer, Porto Alegre tem hoje grandes e importantes centros culturais com foco em arte brasileira contemporânea. A Fundação Iberê Camargo, a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) são alguns deles. Além disso, a cidade passou a abrigar eventos como a Bienal de Artes do Mercosul e, em outras áreas, a Bienal do Livro e o Festival Internacional de Linguagem Eletrônica.

O boom de ações não é fruto apenas da conjuntura atual, irrigada pelas leis de incentivo à cultura. O momento de ebulição da cidade, que não é necessariamente um grande pólo econômico ou turístico, é resultado de uma política que vem sendo implantada desde o começo do século XX e, agora, quase um século depois, começa a colher os frutos.

Para a professora Ana Albani de Carvalho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e curadora da Pinacoteca, a trajetória teve início com a criação do Instituto das Artes, há cem anos. A partir dali, a cidade ganhou um diferencial em relação a outros centros nacionais, apesar de manter, na produção, um padrão conservador em termos estéticos. “Aquele era um momento de formação. Existiam artistas viajantes e, por isso, havia muita troca entre regiões. Mas o gaúcho é um povo centrado, aqui existe um ‘voltar para si mesmo’. Não tínhamos um intercâmbio com outros centros”, diz.

Geradora de um orgulho típico dos estados fronteiriços, a restrição de acesso às regiões próximas parecia, inicialmente, um problema. Mais tarde notou-se que o relativo isolamento levava também à formação de uma sociedade preocupada em construir uma história cultural, voltada não só à produção artística, mas à educação sobre arte.

Liliana Magalhães, superintendente do Santander Cultural, aquece a teoria ao dizer que “a importância do estudo como uma noção hereditária ajudou a população a debater, refletir e questionar. Essa força da sociedade é quem identifica, promove, produz e potencializa nossos produtos culturais”. A tese parece correta. A cidade respira um ar cultural que se espalha para além do circuito “culto”.

Com a nova sede inaugurada há menos de um mês e já com mais de 16 mil visitantes, a Fundação Iberê Camargo, responsável por promover e cuidar da obra do artista gaúcho, é um sucesso. Às margens do Rio Guaíba, o esplendoroso prédio branco, desenhado pelo arquiteto português Álvaro Siza, é exemplo de modernidade.

Além das grandes salas (que agora recebem a exposição Moderno no Limite, com cerca de 90 obras do artista), a Fundação tem auditório, biblioteca e espaços de convivência abertos ao público de graça. O curso de formação de professores de escolas públicas e privadas está sempre lotado. Em um sábado à tarde, grupos de jovens em rodas, sentados no chão, desenham e conversam sobre cultura. A luz natural, captada por um sistema computadorizado, é refletida nas salas e mantém sempre a mesma tonalidade nos diferentes ambientes. Essas e outras regalias orçam o projeto em 40 milhões de reais, sendo 60,8% oriundos de leis de incentivos fiscais e 39,2% aplicados diretamente pelos patrocinadores.

Diferente do que acontece com a maioria dos empreendimentos apoiados pela Lei Rouanet, a diretoria da Fundação, encabeçada por Jorge Gerdau, optou por não associar seu nome ao dos mantenedores. Fábio Coutinho, superintendente cultural da instituição, diz que a FIC, como é conhecida, preferiu não seguir o óbvio. “Todo o nosso material tem o nome dos patrocinadores. A diretoria optou por fazer uma fundação, o senhor Jorge achou que a cidade merecia e o artista também. Mas não vemos a necessidade de, com isso, sobressair algum nome”, diz.

Se o Iberê Camargo usou as leis de incentivo de maneira discreta, o Santander preferiu não lançar mão do mecanismo. O banco optou por bancar o projeto com orçamento privado. “A lei traz um estímulo, porque amplia os investimentos na área de cultura. Mas, ao mesmo tempo, se perde o valor que a cultura realmente tem”, diz Liliana Magalhães. Para ela, a atuação é feita de forma isenta e reflete o verdadeiro modelo multiplicador de parcerias, prezado pela instituição. “A cultura sempre trabalhou com investidores. Esse conceito já existia bem antes das leis. Tentamos lidar com isso de forma cuidadosa e, ao mesmo tempo, completa.”

O modelo multiplicador de parcerias é bem visto por todos os centros culturais da cidade. O secretário de cultura, Sergius Gonzaga, diz que a atual efervescência resulta das ações conjuntas entre a comunidade, a iniciativa privada e o poder público. “Hoje, a visão de que todos são adversários foi substituída por uma visão cooperativa e participativa. Temos a esperança de que a cultura seja ainda vista como o néctar absoluto”, completa.

A cooperação acontece também entre as associações de classes, como a Associação de Artes Plásticas Chico Lisboa, que reforça a parceria dos artistas locais com as sedes culturais. Já o modelo de parcerias que o Santander aplica desde 2001, foi apresentado recentemente num fórum promovido pela Aliança Mundial pela Arte e Educação, como um promissor exemplo a ser implantado em outras instituições culturais mundo afora.

O que acontece em Porto Alegre, com uma gestão cultural focada no repasse de conhecimento, não é um milagre. Nem uma fórmula. Neste momento em que voltam a ser discutidas as mudanças na Lei Rouanet, a cidade, certamente, pode oferecer exemplos dos diferentes usos do dinheiro público, e privado, em projetos culturais. Enquanto alguns grupos, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, insistem em brigar pelas “verbas”, a cidade mostra que a saída, muito mais do que uma eterna disputa de egos, pode estar nas pequenas ações capazes de enxergar a cultura como uma peça chave na formação da sociedade.


* A jornalista viajou a convite do Santander Cultural

3 comentários:

Morillo Carvalho disse...

Excelente esse texto, hein Camila?
Gostei demais também do texto das mega-ostronas que vocês comeram e eu vi lá...
Já criei um link seu no meu blog!
Beijão, até o Rio ou a próxima cobertura!

Camila Alam disse...

Que belas ostras, hein? hahaha
Até a próxima, vamos combinar!
bjo!

Anônimo disse...

Adorei a matéria, um modelo de gestão cultural interessante que vem ensinar a todos, uma forma bem criativa de oferecer a arte sem ter de vender a alma ao diabo.