segunda-feira, 6 de julho de 2009

Uma mulher nada cordial*

*Matéria publicada originalmente na CartaCapital nº 551

UMA MULHER NADA CORDIAL
Dona Emérita não aceita desocupar a casa da família Buarque de Holanda
Por Camila Alam

O historiador Sérgio Buarque de Holanda provavelmente não imaginava que a casa em que morou durante anos, em São Paulo, causaria tantos problemas. Se soubesse, o autor de Raízes do Brasil certamente teria dedicado maior atenção ao seu testamento. Localizada no bairro do Pacaembu, na rua Buri, a propriedade de 400 metros quadrados foi a moradia dos Buarque de Holanda por mais de 25 anos. Foi também palco de saraus e jantares que reuniam boa parte da elite cultural nas décadas de 50 a 70. Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Manuel Bandeira eram alguns de seus frequentadores. Dizem, até, que foi daquelas janelas que Chico Buarque viu a banda passar, em meados da década de 60, e compôs uma de suas canções de maior sucesso.

Com a morte do historiador, em 1982, a família, na casa desde 1957, resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro. Depois de anos a portas fechadas, a residência passou a ter outra moradora, dona Emérita Aparecida Carbone, ex-babá da família. Dessa apropriação nasceu a confusão que hoje está nas mãos da Justiça. Dona Emérita reclama a usucapião da propriedade, enquanto família e prefeitura tentam finalizar um acordo de desapropriação da moradia para construção de uma biblioteca musical. Segundo o Código Civil, a usucapião dá direito de aquisição da propriedade, de acordo com o tempo em que o morador nela esteja. As variáveis são infinitas.

A moradia, antes palco intelectual, agora é cenário de intensa troca de farpas. Não são poucos os imbróglios e versões. A começar pela data de mudança de dona Emérita, hoje com 52 anos. A ex-funcionária da família insiste em não ser entrevistada. Procurada pela reportagem, nem sequer atendeu à porta da casa. Autorizou, porém, que seu advogado falasse em seu lugar. Wilton Fernandes da Silva diz que a ex-babá está na residência “há quase vinte anos”. Ana Buarque de Holanda, filha de Sérgio e irmã do compositor Chico, acredita que “faz no máximo treze”. A data exata da mudança da ex-funcionária da família é contestável, mas sabe-se que ocorreu quando Emérita precisou de moradia na fase em que seu marido, hoje falecido, estava doente. “Ela foi babá dos meus sobrinhos, que hoje têm mais de 30 anos”, diz Ana Buarque. “Muitos anos depois, ela apareceu. A casa era só uma ajuda, um empréstimo”, completa.

Empréstimo ou não, Emérita permaneceu na residência por, ao menos, dez anos. Alega ter, durante todos os anos, cuidado da casa como se fosse sua. “Se não fosse ela, o lugar teria desabado. Ela não era a caseira, porque normalmente o caseiro tem alguém a quem reportar os problemas. Era a dona mesmo, fazia tudo”, diz o advogado Fernandes da Silva, sem lembrar que, segundo a família, Emérita nunca pagou o IPTU do imóvel. “Quem paga é minha mãe”, diz Ana Buarque, referindo-se a Maria Amélia, matriarca dos Buarque de Holanda. Ao que parece, a dúvida é: quem cuidou dos cupins? “Se teve ou tem cupim, isso não diz nada. Tudo que foi preciso, minha mãe pagou”, retruca a filha de Maria Amélia.

A disputa por causa da propriedade não era nem imaginada em 2002. Naquele ano, comemorava-se o centenário de Sérgio Buarque de Holanda. Na rua Buri, na noite de 11 de julho, a casa estava em festa. A então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, participava da cerimônia que comemorava também o início do processo de desapropriação da moradia. Pelo valor de 400 mil reais, na época, firmava-se o acordo para transformar a residência em um centro cultural voltado para as artes, a Discoteca da Música Brasileira. O advogado Fernandes diz que a ideia original partiu de dona Emérita. Assim como a mudança de nome da praça em frente à moradia, hoje nomeada Raízes do Brasil. “Ela procurou um vereador”, diz. O advogado não se lembra do nome do vereador, mas sabe-se que o autor do projeto de renomeação da praça, assim como o de desapropriação do imóvel, foi Carlos Giannazi, à época integrante do Partido dos Trabalhadores, hoje deputado estadual pelo PSOL. Sabe-se também que, apesar do esforço, Giannazi nem sequer foi convidado para a festa no casarão. O deputado reconhece a ajuda de Emérita no processo. “Tive a ideia e ela foi a primeira intermediária no contato com a família”, disse.

Todos estavam contentes com o acordo, até que, quatro anos depois, dona Emérita recebe uma ordem de despejo da prefeitura. Teria de deixar a mansão em 24 horas. Decidiu, então, entrar com o processo da usucapião. “A transferência do patrimônio particular para o público já está definida”, diz Cid Puppo Neto, advogado da família Buarque. O que ainda os envolve no processo é que, até hoje, o dinheiro da indenização da desapropriação do imóvel não foi descontado. “Eles não se interessam pela casa, mas sim pelo recurso. Tanto que se desfizeram do imóvel, quando tiveram oportunidade”, alfineta o advogado da ex-babá. A família Buarque não comenta os motivos pelos quais ainda se mantém em uma briga que, teoricamente, não é mais dela. “A questão de usucapião é uma questão particular”, diz o advogado Puppo Neto.

Com o processo, dona Emérita ganhou tempo e permanece até hoje na casa. A prefeitura requer sua saída da residência até o mês de setembro deste ano. Segundo o advogado Fernandes, a família teria oferecido à ex-funcionária outro imóvel. Um apartamento no Rio de Janeiro. Puppo nunca ouviu falar de tal proposta. “Não estamos em negociação”, diz.

Agora, a prefeitura nada em burocracia e não prevê o fim do embate. Antes sob a responsabilidade da Secretaria da Cultura, o projeto passou às mãos da Secretaria da Educação, que propôs a transferência para a de Negócios Jurídicos. Enquanto isso, a população de São Paulo não ganha um novo centro cultural e as farpas seguem soltas pelo bairro do Pacaembu.

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