quarta-feira, 29 de julho de 2009

abstrato por necessidade ou revelação tardia

Publico aqui uma matéria que saiu na CartaCapital nº 553 e que gostei bastante de fazer. Recebi tbm alguns comentários bacanas de leitores e isso é sempre bom! =)
Depois vou tentar subir algumas imagens tbm!

Abstrato por necessidade

Quase cego, André Carneio expõe suas fotografias, tão inquietantes quanto sua obra de ficção científica

POR CAMILA ALAM

Aos 87 anos, o escritor André Carneiro tem muitas histórias para contar. Difícil é a tarefa de selecionar episódios e causos a serem narrados. Diz-se poeta, mas tem uma trajetória multifacetada. É um artista que flui com naturalidade entre diversos campos de atuação e brinca com letras, pincéis e câmeras. Ele fez cinema, fotografia, pintura. Escreveu livros, de prosa e poesia, pesquisou a parapsicologia, foi hipnólogo. Assume as tantas profissões com bom humor. “Sou um fenômeno artístico”, diz, rindo.

Nome essencial na produção literária de ficção científica, autor de Confissões do Inexplicável (2007) e Amorquia (1991), Carneiro nunca se preocupou em divulgar os negativos que guardava em casa, separados por caixas, etiquetados. Sua produção como fotógrafo está exposta pela primeira vez em São Paulo, em novo espaço cultural chamado Pantemporâneo. Para chegar até sua exposição, Carneiro sobe alguns andares do prédio em um elevador panorâmico. Acha um pouco assustador. “É o medo da imaginação”, diz.

A mostra Fotografias Achadas, Perdidas e Construídas resume 58 anos de um lado de Carneiro que ficou praticamente esquecido. Não por um desejo consciente, mas por não se considerar profissional ou por ter focado com demasiada paixão em suas outras produções.

Integrante da chamada Geração de 45, era amigo do escritor Oswald de Andrade, que, segundo ele, se queixava de uma atuação isolada e abandonada. “O grande público achava que o modernismo era uma bobagem. A fotografia artística era considerada uma arte secundária ou documentária. Mas ela transformou a criação estética do artista na época.”

Algumas das imagens do autor foram consideradas essenciais para a formação da fotografia modernista. Uma delas é Trilhos, de 1951, em que Carneiro observa, do alto, uma sequência vazia de linhas de bondes curvas e brilhantes, ornada por alguns poucos pedestres. Em outras imagens, ele põe o olhar sobre o cotidiano, observa passantes em preto e branco ou registra coloridos nus que, posteriormente, recorta para fazer montagens.

Juntamente com a exposição, Carneiro lança um livro-catálogo em que mistura as fotografias expostas com outras históricas. Estabelece relações entre a fotografia e o cinema, ou a poesia, e relembra algumas passagens da vida em que as fotos foram marcantes. Muitas delas vividas ainda na época da ditadura, quando escapou de ser preso algumas vezes. Pouco tempo depois do golpe de 1964, morava em Atibaia, interior de São Paulo, na casa de um guerrilheiro espanhol que havia sido condenado à morte por Francisco Franco, na Espanha. Raspou o bigode que adornava a face e mudou de nome. Por algum tempo, se chamou Augusto.

Em um congresso de escritores, realizado em Brasília, foi convidado a conhecer o general Costa e Silva, a quem deveria agradecer pelo auxílio oficial concedido ao evento. “Distraidamente levei até ele minha pequena câmera fotográfica, que não era russa”, relembra Carneiro. Mas não foi necessário utilizá-la. A um fotógrafo oficial coube a função de registrar o aperto de mão entre ele e o general. Daquele dia em diante, passou a carregar a foto do encontro na bagagem. “Um sujeito cumprimentado pelo presidente deveria significar bom rapaz.” A imagem o liberou certa vez de uma batida. Ele apresentou a foto aos policiais, que, cochichando entre si, permitiram sua liberação, “com as mãos úmidas e sem nenhuma acusação”.

Se a fotografia já o livrou de apuros, também lhe causou alguns tormentos. Nada que resultasse em prisão, no máximo uma discussão entre vizinhos. Carneiro costumava fazer nus. Na janela de seu apartamento, em São Paulo, usava manequins e modelos que, captados pela luz solar, refletiam a cor dourada. Numa tarde, a vizinha do prédio da frente sentiu-se horrorizada com o que via. Depois de intrigas, reclamações e contratempos na vizinhança, resolveu instalar na janela um papel opaco, como proteção para as imagens. “Brinquei dizendo que iria escrever do lado de fora: “Agora vocês perderam o espetáculo”.

Apesar de falar com humor e satisfação sobre seu trabalho, Carneiro deixa transparecer decepção. Depois de mais de 60 anos de carreira, sabe que seu nome, seja como escritor, poeta ou fotógrafo, é pouco conhecido. “Não sou muito lido, não. Faço com total dedicação toda arte, mas a consequência disso é a pobreza. Pensam que eu ganho um dinheirão, mas ganho um dinheirinho”, diz, transparecendo um misto de humor e tristeza.

Carneiro é do time de Nelson Rodrigues. Defende que o povo brasileiro possui o chamado complexo de vira-lata. Certa síndrome de inferioridade que não torna possível o elogio à própria terra, costumes ou tradições. Do ponto de vista artístico, acredita haver uma “falsa invasão de conhecimento”. “O brasileiro detesta confessar que não sabe. Existe uma atitude interessante, típica e bastante explicativa em suas consequências. É o que denominamos gozação.” Carneiro diz que até hoje tem um pouco de receio de se declarar artista, escritor, poeta ou fotógrafo. “A gozação declina para a desvalorização, um ataque sutil à posição do intelectual”, diz.

Hoje, tem cerca de 10% de visão e, em razão do problema, pouco fotografa. Realiza, entretanto, alguns autorretratos e quadros abstratos com base de vidro. Diz que chegou à abstração não por evolução natural, mas por necessidade. “Minha visão tem defeitos, meu cérebro inventa coisas que não existem, principalmente à noite. Meus quadros e fotos abstratos são arbitrários e questionam por si mesmos.” Fotógrafo modernista, pintor contemporâneo e criador de histórias fabulosas, Carneiro agora é revisto por completo. E, inventor bem-humorado, dá ao leitor o seguinte conselho: “Se eu não falei algo, você pode inventar”.

3 comentários:

Manali Store disse...

Adorei!! Sempre me ajudando com cultura! Obrigadissima!!!

Anônimo disse...

Muito bom! Taí um artista que eu vou procurar conhecer.
Abraço!

Fabinho

b. filmes disse...

Brava Cá! Não imaginava esse seu lado! eheheh...